domingo, agosto 27, 2006

Agência de propaganda e as engrenagens da história
Roberto Menna Barreto, Summus Editorial, 2006

Investir contra a publicidade foi sempre a tarefa preferida de críticos e ensaístas que, como Millôr Fernandes, a designam como promotora da mentira. Atribuem ao ramo termos que em outros contextos seriam perfeitamente cabíveis – capitalista, vendida, onírica, fictícia, etc. Estes localizam-se num dos gumes da opinião acerca do ramo publicitário, antepondo-se àqueles que tratam do assunto de maneira fascinante, como se a profissão fosse, num futuro longínquo, a única exercida pelos seres humanos. Abordam-na, não obstante, sem consistência, estipulando-a como sinônimo de festas, eventos e locais povoados pelas parcelas mais abastadas da sociedade. Roberto Menna Barreto, não inclinando a nenhum dos dois lados, procura se manter sobre a ponta dessa faca, analisando os sustentáculos sobre os quais se apóia o portentoso edifício propagandístico.

Logo no início do livro, o autor esboça uma situação imaginária, onde anuncia o tema central da obra, utilizando-se do ethos publicitário para alcançar seu objetivo. Tem-se a impressão de que, mesmo a despeito do título, as linhas que sucederão nas páginas seguintes preconizarão a análise da profissão em seu aspecto mais recente, recorrendo à história somente quando lhe for conveniente. Mas não é isso que acontece. Antes, porém, de procurar subsídios no passado, Barreto procura desfazer as imagens clássicas que sociólogos, antropólogos e pessoas que, como o próprio autor diz, “estão fora do métier”, fazem da propaganda: que se trata de um mecenato velado; que o criativo, assim como um artista, terá o tempo que quiser para pensar numa idéia brilhante; que sempre haverá a desconfiança perante os profissionais da área, ad infinitum.

Finda essa descontrução, a história da propaganda comercial passa a ser esboçada, tomando o resto de todo livro, alternando entre uma ou outra ponderação do autor a respeito do tema. De fato, por vezes há a ligeira impressão de se estar lendo um livro de História, daqueles chatíssimos, cujos autores nos brindam com termos infindáveis, cobrados posteriormente em testes de feitura humanamente impossível. O trajeto histórico vai desde o faraó Ramsés, que ordenava aos escribas que forjassem os acontecimentos, destacando-o como eterno vencedor; passa pelo lugar-comum que se tornou o nazismo e sua propaganda que exacerbava o caráter nacionalista do partido hitleriano; terminando, em fim, na pós-modernidade – sendo que nem ela escapa das menções feitas ao passado.

Doravante, o autor defende que, boa ou má, a publicidade se aproveita da pré-disposição de que todos nós temos em acreditar, mostrando quão arraigados em nosso inconsciente estão os tentáculos e extensões da prática publicitária. Barreto, assim, explicita que mais que “operosas células do Partido Consumista”, as agências de propaganda contribuem na formação do caráter social, pondo-as no status de fábricas de cultura. Essa opinião faz constar-se em diversos trechos do livro, todos regados à prolixidade em demasia, fazendo com que a obra sirva-se, logo, como um estudo mais profundo da área, destinado a teóricos, historiadores, filósofos, ou seja, todos que não o publicitário.

É claro que parece absurdo sentir-se incomodado com a quantidade vultosa de referências à história num livro que traz grafado no título a própria palavra, entretanto, mesmo com erudição e estilística bem elaborada, o autor passa por pedante até mesmo quando faz constatar a opinião alheia para endossar o que defende. Menna Barreto vale-se, não obstante, de esquemas, como os de Fromm, e asserções puramente humanísticas, “é função do caráter social modelar e canalizar a energia humana dentro de determinada sociedade, com o objetivo de manter o funcionamento ininterrupto dessa sociedade”. Chato e exaustivo, o livro começa animado mas termina respirando por aparelhos. Parece que a famigerada criatividade, abordada em outros livros do autor, Criatividade em propaganda e Criatividade no trabalho e na vida, foi o que faltou para tornar a obra, no mínimo, tragável.

sábado, agosto 19, 2006

Das eleições

Ouvir as propagandas eleitorais veiculadas no rádio é sobretudo uma piada. Se não se pode contar com os rostos meticulosamente maquiados – ou retocados em softwares gráficos –, apela-se a jingles, frases feitas, piadas e toda outra sorte de quimera publicitária. O marketing político aplicado às aparências, outrora no principal veículo de massa, cai por terra naquele, abrindo férteis terrenos para o desabrochar de interpretações dúbias, promessas repletas de chavões e insulto psico-intelectual àqueles que, de boa vontade, dispõem-se a analisar o perfil dos principais candidatos, na inocente e ignóbil esperança que seu voto, assim como apregoa os detentores da opinião pública, de fato mudará os rumos do país. O ideal judaico-cristão de representatividade está mais forte do que nunca, seja num infundado messianismo político, seja na crença da democracia à ateniense.

Estar diante da televisão é estar diante dum mundo majoritariamente construído por estímulos e apelos aos sentidos. Dentro da caixa, que varia em polegadas e designações que só fazem seu valor variar, quase tudo é belo: a bela roupa, o belo cabelo, as belas unhas, a bela empresa, a bela atriz feia, o belo trânsito, a bela poluição, o belo favelado, ad infinitum. Como o olfato é a única parte excludente, as imagens podem transitar pelos quartos e salas de jantar sem se preocuparem com o incômodo causado por algum cheiro que deturpe a almejada estabilidade do lar. Assim, enganar-se perante a variada gama de objetos que compõe a transitoriedade dos canais televisivos passa a ser fato comuníssimo, e não parvoíce, como diriam alguns teóricos, das camadas sociais menos abastadas – pois para eles, intelecto e condição financeira constituem necessariamente o binômio causa e efeito.

Então, se a publicidade pode contar com a habilidade de fotógrafos, que constroem, por exemplo, alimentos a partir de plástico e de tinta, atribuindo-lhes ótimo aspecto; com a habilidade de diretores, irresponsáveis pela parte defectível das mulheres em campanhas de produtos cosméticos – sendo, portanto, responsáveis pela parte indefectível das mesmas –; pode-se, por que não, encontrar porto seguro não só nos desígnios supracitados, mas em outros análogos, com o intuito de mascarar os interesses mais abjetos, travestidos pelos escritórios mais bem equipados e sorrisos mais bem polidos. Uma espécie de niilismo povoa o horário político, e isso não parece incomodar: excesso de forma e escassez de conteúdo. As propostas são sempre recicladas, destituindo-se, vez ou outra, desse ou daquele tópico, firmando com o espectador um consórcio: “eu o entretenho, pura e simplesmente”.

Os antigos “showmícios” são prova cabal de entretenimento aliado à política. Neles, artistas, quase sempre cantores sertanejos, além de pedirem apoio a candidato x ou y, aproveitavam para divulgar seu último cd, já nas lojas de todo país. A famigerada política do pão e circo, que até hoje povoa os mais diversos textos – dispondo-se como metáfora dos jogos de futebol, carnaval, etc. – faz-se presente também nesse tipo de evento, dado que, enquanto à platéia fica relegado o papel de mero voyeur, candidatos e artistas digladiavam-se no palco, procurando constatar quem detinha a maior influência. (In)felizmente, o espetáculo foi proibido, restando apenas o palco e mais promessas infundadas. Nada mais interessante do que ver Calypso junto ao asséptico e frígido José Serra ou a graciosa Hebe Camargo divertindo-se com o instável estado de ânimo de Heloísa Helena.

Estariam, então, os cegos em vantagem? (Sei que tal hipótese pode parecer sadismo de minha parte – e que despertará alguns comentários infelizes. Pretendo, todavia, contar com o virtuosismo dos espíritos que lêem este blog-experimento, pedindo-lhes que, por essa e por outras vezes, abstraiam-se de seus valores morais). Isso pois analisar o discurso político a partir do tom de voz, evita armadilhas, havendo-se, então, o enfoque no que realmente importa. As palavras valem mais que mil gestos e estes tentam valer mais que aquelas. A perfeição não mais é atribuída a um número reduzido de candidatos; antes, sua onipresença acaba por anular-se a si mesma, ou quando se torna praxe, ou quando é interferida por algum comentário mal colocado. Diz-se que na terra dos cegos, o rei é dotado de visão. Presume-se, pois, que a majestade assemelha-se a alguma divindade, por tanto possuir compaixão por seu povo, aplicando, aqui sim, uma cega justiça.

sábado, agosto 05, 2006

Panoptismo no centro de São Paulo

A vigente prefeitura de São Paulo, em parceria com a Telefônica – sim, a própria – instalou treze câmeras em pontos estratégicos do centro da cidade homônima. Com a prerrogativa de atuar em nome, e pela melhoria, da segurança, a ação cooperada entre cidade e estado, faz suscitar discussões sobre o que é público e privado, e, por conseqüente, as mazelas metropolitanas, outrora filhos renegados pela mídia, que passam a ganhar publicidade. Esta, diferindo no que tange à massificação dos veículos de comunicação, é predominantemente monológica, servindo-se como estudo aos olhos de poucos, senão espetáculo circense duma platéia de aficionados pelo já pragmático dia-a-dia. Em outros países, em que a monitoria dos principais centros urbanos se fez presente, grupos de diretores amadores transformaram esse estorvo em objeto de apreciação, contemplado sobre a ótica da arte.

Criado por Jeremy Bentham, em 1789, o Panóptico foi um projeto de prisão modelar para a reforma intelecto-social de detentos. A arquitetura, interessantíssima, dispunha uma torre no centro de um espaço circular, ao redor da qual se faziam presentes as celas, todas com uma completa abertura para torre, e outra para o ambiente externo. Assim, os responsáveis pela vigília dos presos, podiam ver o que os internos faziam, sem que estes o percebessem, uma vez que as janelas da torre era cobertas por uma espécie de persiana, permitindo o olhar somente dos que se encontrassem em seu interior. A vigilância é, portanto, a pedra angular do Panóptico, dado que nos presos se instalava a constante sensação de inquietude por não saber se havia, de fato, alguém a os observar, restando-lhes os bons modos, evitando punições, aplicadas em última instância.

As paredes de concreto criadas por Bentham foram, posteriormente, teorizadas pelo filósofo francês Michel Foucault, em seu livro Vigiar e punir, 1975, no qual é traçada uma linha histórica dos sistemas de punição e encarceramento, desde as ditas civilizações bárbaras até as barbáries das sociedades pós-modernas. A despeito do panoptismo, Foucault esboça possíveis aplicações do Panóptico nessas mesmas sociedades, transpondo a torre central para todos os lugares, reconstruindo-a como uma espécie de onipresença, dada através dos sistemas tecnológicos que surgem incessantemente. A liberdade, que nunca atingiu sua completude, restringe-se à moral e ética sociais, arrebanhando o gado dos detentores do poder. A liberdade, não obstante, não se difere de sua antítese; antes, ambas incorporam-se dando corpo a mais um monstro contemporâneo.

O reality show do centro de São Paulo, como alguns jornais tem noticiado a instalação das câmeras, principiou revoltas e desaprovações dos que transitam pelas áreas filmadas, pois, bem se sabe, sua imagem social é construída cautelosamente com máscaras de botox, bolsas falsificadas Louis Vuitton, etiqueta apreendida nos programas femininos e citações que variam desde Nietzsche a Kant. Diferente de imagens clássicas, dotadas de signos e toda aquela baboseira aprofundada pelos lingüistas e pela semiótica peirceana, elas são instáveis, logo, passíveis de uma ligeira e inconveniente transgressão de atos, então qualquer deslize nos bons modos resultará na gravação, assistida por gargalhadas histéricas e semblantes curiosos. Estranho que esses personagens, quando transpostos para o lado dos expectadores, divertem-se com aquilo que mais abominam, sendo, assim, uma doce e bizarra metáfora do axioma “pimenta nos olhos do outros é refresco”.

Talvez haja o esquecimento generalizado que a moral judaico-cristã criou um deus que observa tudo e todos, a qualquer momento, em qualquer lugar. Então, segundo esse desvio de conduta, é válido sentir-se incomodado ao ser filmado pela câmera dentro de um elevador, e conformado pela existência dum deus voyeur, que assiste de camarote ao ato do coito; é justificável considerar esse deus como uma sorte de entidade mítica megalomaníaca, responsável por todas as ocorrências que se dão desde o momento da criação, mas é totalmente execrável o poder que se atribui às instituições humanas. É como se houvesse a necessidade da eterna transferência de características, inerentes aos homens, à deidade, cujo nome varia – sabe como é, evitar lugar-comum. Deus sempre esteve no centro de São Paulo, mas, por ignorância ou comodismo, sua presença não era incômoda; era até benéfica.

Sempre se estudou o caráter humano dos imortais deuses da Grécia antiga. Sempre se criticou os politeísmos das sociedades arcaicas. Nunca se percebeu que a história não muda; o que muda são apenas os nomes.