Das eleições
Ouvir as propagandas eleitorais veiculadas no rádio é sobretudo uma piada. Se não se pode contar com os rostos meticulosamente maquiados – ou retocados em softwares gráficos –, apela-se a jingles, frases feitas, piadas e toda outra sorte de quimera publicitária. O marketing político aplicado às aparências, outrora no principal veículo de massa, cai por terra naquele, abrindo férteis terrenos para o desabrochar de interpretações dúbias, promessas repletas de chavões e insulto psico-intelectual àqueles que, de boa vontade, dispõem-se a analisar o perfil dos principais candidatos, na inocente e ignóbil esperança que seu voto, assim como apregoa os detentores da opinião pública, de fato mudará os rumos do país. O ideal judaico-cristão de representatividade está mais forte do que nunca, seja num infundado messianismo político, seja na crença da democracia à ateniense.
Estar diante da televisão é estar diante dum mundo majoritariamente construído por estímulos e apelos aos sentidos. Dentro da caixa, que varia em polegadas e designações que só fazem seu valor variar, quase tudo é belo: a bela roupa, o belo cabelo, as belas unhas, a bela empresa, a bela atriz feia, o belo trânsito, a bela poluição, o belo favelado, ad infinitum. Como o olfato é a única parte excludente, as imagens podem transitar pelos quartos e salas de jantar sem se preocuparem com o incômodo causado por algum cheiro que deturpe a almejada estabilidade do lar. Assim, enganar-se perante a variada gama de objetos que compõe a transitoriedade dos canais televisivos passa a ser fato comuníssimo, e não parvoíce, como diriam alguns teóricos, das camadas sociais menos abastadas – pois para eles, intelecto e condição financeira constituem necessariamente o binômio causa e efeito.
Então, se a publicidade pode contar com a habilidade de fotógrafos, que constroem, por exemplo, alimentos a partir de plástico e de tinta, atribuindo-lhes ótimo aspecto; com a habilidade de diretores, irresponsáveis pela parte defectível das mulheres em campanhas de produtos cosméticos – sendo, portanto, responsáveis pela parte indefectível das mesmas –; pode-se, por que não, encontrar porto seguro não só nos desígnios supracitados, mas em outros análogos, com o intuito de mascarar os interesses mais abjetos, travestidos pelos escritórios mais bem equipados e sorrisos mais bem polidos. Uma espécie de niilismo povoa o horário político, e isso não parece incomodar: excesso de forma e escassez de conteúdo. As propostas são sempre recicladas, destituindo-se, vez ou outra, desse ou daquele tópico, firmando com o espectador um consórcio: “eu o entretenho, pura e simplesmente”.
Os antigos “showmícios” são prova cabal de entretenimento aliado à política. Neles, artistas, quase sempre cantores sertanejos, além de pedirem apoio a candidato x ou y, aproveitavam para divulgar seu último cd, já nas lojas de todo país. A famigerada política do pão e circo, que até hoje povoa os mais diversos textos – dispondo-se como metáfora dos jogos de futebol, carnaval, etc. – faz-se presente também nesse tipo de evento, dado que, enquanto à platéia fica relegado o papel de mero voyeur, candidatos e artistas digladiavam-se no palco, procurando constatar quem detinha a maior influência. (In)felizmente, o espetáculo foi proibido, restando apenas o palco e mais promessas infundadas. Nada mais interessante do que ver Calypso junto ao asséptico e frígido José Serra ou a graciosa Hebe Camargo divertindo-se com o instável estado de ânimo de Heloísa Helena.
Estariam, então, os cegos em vantagem? (Sei que tal hipótese pode parecer sadismo de minha parte – e que despertará alguns comentários infelizes. Pretendo, todavia, contar com o virtuosismo dos espíritos que lêem este blog-experimento, pedindo-lhes que, por essa e por outras vezes, abstraiam-se de seus valores morais). Isso pois analisar o discurso político a partir do tom de voz, evita armadilhas, havendo-se, então, o enfoque no que realmente importa. As palavras valem mais que mil gestos e estes tentam valer mais que aquelas. A perfeição não mais é atribuída a um número reduzido de candidatos; antes, sua onipresença acaba por anular-se a si mesma, ou quando se torna praxe, ou quando é interferida por algum comentário mal colocado. Diz-se que na terra dos cegos, o rei é dotado de visão. Presume-se, pois, que a majestade assemelha-se a alguma divindade, por tanto possuir compaixão por seu povo, aplicando, aqui sim, uma cega justiça.
1 Comments:
A fé está acima da compreensão, e a política está acima da fé. O próprio ato de concentrar poder na mão de poucos já pode ser considerada uma atitude derrotista, um martírio só feito sob o véu (ou a droga) da fé - no fundo pode-se sempre dizer que o é; a falácia da "organização vital" só se faz crível e sensata no discurso de empreendedores e políticos através da... hm, propaganda?
O mundo das aparências aqui não se contrapõe ao mundo das idéias como Platão gostaria que fosse - ambos se fizeram um só no uno que cá representa a realidade e a sua compreensão - ou falta de tal -, de maneira que dizer "eu pareço" é "sinônimo por antonímia" de "eu sou". Não que a ciência cível fundamente-se nisso: isto é o efeito, longe depois da causa.
E que preocupação com as fezes morais e éticas em país de corrupto e mundo de absurdo; bem-aventurado aquele que não vê, não ouve e não sente: tão pior é ter os sentidos entoxicados até o cancro da estupidez avançar em direção ao cérebro do que simplesmente jamais tê-los tido. Afinal, o privilégio de ter a si próprio não tem preço, já dizia Nietzsche. (Cara, fala sério, eu adoro esse chavão.)
Para todos os efeitos, mostre primeiro, seja depois. É notícia!
Forte abraço!
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