terça-feira, outubro 24, 2006

Telemarketing e Ciências Humanas

Constitui uma das principais etapas, até que se alcance o paraíso profissional, expiar os pecados nos call centers. Quem vulgarizou o termo, adornando-o com estrangeirismos, bem sabia o que fazia, pois se o sentido literal fosse expresso, através de palavras que de fato denotassem o espírito da profissão, o sofrimento começaria por antecipação. A oferta do mercado vem crescendo paulatinamente, assim como a procura pelos postos de atendimento, onde se sujeita ao abjeto, escuso e absurdo. Empresas nacionais inscrevem-se em programas de estágio; outras, offshore, evitam dispêndios em seus países de origem, dependendo do bate-papo tupiniquim a fim de que suas marcas atinjam os objetivos, seguindo as estratégias pressupostas. Internacionais ou não, a prática acaba sendo a mesma, assim como o desgaste físico-mental, responsável pelo envelhecimento dos semi-escravos que a compõem, donos de forçosas aveludadas vozes, simpaticíssimos com os interlocutores.

Primeiro ano de faculdade, felicidade, parentes contentes com a conquista, amigos cogitam seu futuro profissional. Futuro este que, coberto pela névoa da imprecisão mercadológica, nunca se posiciona sobre diretrizes que favoreçam a carreira escolhida. Desde de pequeno, o ser em questão queria ser o que queriam que ele fosse, que exercesse as profissões cujo prestígio social ainda encontrasse subsídios na sociedade – as tarefas exercidas pelas mesmas remontam às épocas áureas da história do Estado; bem se sabe que o passado, sobretudo os mortos, possui tamanha influência na definição dos rumos a serem tomados por aquele que vive o hoje – que fosse, enfim, médico, advogado ou engenheiro. Se o tempo passa, e transcorre por nossas mãos, nossa escolha profissional se comporta da mesma forma. Pela primeira vez, diz-se que a predileção por essa ou aquela carreira é inteiramente nossa, e que não há interferência da opinião alheia. Ledo engano: continua-se tão influenciado quanto antes, mas dessa vez é pior: a carência de conhecimento acerca do trabalho almejado acaba por transformar a pessoa num estereótipo ambulante.

A procura pelo primeiro emprego revela-se como Fausto a compactuar com Mefistófeles: não se sabe ao certo quais as vantagens que a magia trará ao praticante; sabe-se, porém, que a saída do marasmo é uma certeza, e que a diversão será uma das etapas conseqüentes ao pacto selado. Frustra-se ao se deparar com a escassez de oportunidades de emprego focadas na área em que se cursa na faculdade. Quando há, o salário é um entrave, senão uma piada de mau gosto, rindo histericamente à face dos futuros trabalhadores. E qual é o pacto feito? O contrato assinado com uma empresa desejosa de força de trabalho na área de telemarketing. O salário é mediano, rotina relativamente curta, e a descrição da vaga apontava para algo tranqüilo: relacionamento com o cliente. Moleza. Obrigado, Alexander Gram Bell pelo telefone nosso de cada dia!

Nos primeiros dias, o trabalhador vai-se habituando com o serviço oferecido, sendo esse o período ideal para que sane todas suas dúvidas a respeito do mesmo, e que pare de vez de gaguejar. O aparente clima saudável dessa iniciação é compensado pelo riso do próximo, aquele que se diverte com o estado cru do atendente. Se quando pensamos em controle social, lembramos de sua definição: “mecanismos criados para enquadrar os membros recalcitrantes da sociedade”, descobre-se que o riso é uma das mais cruéis facetas desses mecanismos, e também a mais velada. Não obstante, com o passar do tempo, a empolgação inicial vai diminuindo, enquanto a percepção coercitiva do ambiente aumenta exponencialmente. Uma regra atrás de outra, hierarquização e estratificação dos postos de trabalho, sem contar, é claro, com o ultraje mor da corja dos que se aproveitam dos operadores de telemarketing: as metas/ cotas.

As metas, ou cotas, como também são conhecidas, diferente do jargão publicitário, se trata de uma certa quantidade de serviço, a ser oferecida em determinada quantidade de tempo. Doença, internações ou parentes comatosos não são desculpa para ignorar um dia de operação no call center e, caso a falta se justifique pelos motivos anteriores, além de ter que lidar com ânimo impossível dos supervisores, ter-se-á de lidar com o próprio, uma vez que na maioria dos centros de ligações a remuneração é estipulada por horas trabalhadas num dia; logo, o desconto no salário, ao fim do mês, é uma certeza quando a falta é iminente. Por isso que minha revolta é justificável quando penso nessas metas: tem-se de ignorar a própria existência humana, para que os anseios da empresa sejam realizados. A princípio, diz-se que o cumprimento da meta opera milagres no ordenado, que se não for alcançada não haverá problema, etc. Depois se percebe que aquilo, longe de ser categórico, é um imperativo puro e bruto.

Como tudo que é sofrível, o telemarketing possui suas vantagens, como, por exemplo, o já citado horário: pode-se receber uma quantia considerável de dinheiro por um tempo relativamente pequeno de horas trabalhadas – a mais valia, nesse caso, continua a reger as relações de trabalho, não se engane; a sagacidade mental também é, por conseguinte, um dos aspectos inerentes aos bons profissionais da área, afinal, repudiando o emprego e/ou tendo total descrença no serviço proposto, vender se revela uma arte, e se assemelha ao discurso sofista -- retórica e persuasão são artes, convenhamos; além, é claro, da principal vantagem conseqüente à aquisição do trabalho: o valor dado às outras profissões, até mesmo àquelas de período integral. É provando o veneno que o corpo anuncia quão débil ele está, demandando rigor nas próximas doses.