quinta-feira, dezembro 14, 2006

Da verdadeira inspiração

Já descrevi, com algumas minúcias, o espaço que compreende a feira que eu costumo freqüentar, nos Domingos em que eu deixo de lado uma série de preconceitos, além, é claro, a preguiça eminente, típica do dia. Pois bem, volto a dizer que não há outro local que mais me inspire. Não digo inspiração daquelas que surge forçosamente, num quarto escuro, em que há etílicos e música do Raul Seixas. Falo da inspiração que quebra paradigmas diários, demolindo mitos do cotidiano e que acaba por corroborar um texto que se baseia no mesmo. Afinal, a descrição da aurora por parte daquele que cisma em trancafiar-se em porões que cheiram a mofo, nada mais é que fruto imaginário e insípido de uma mente enérgica, carente da vivência com outras pessoas e todas as mínimas coisas que compõem o repertório de sentimentos humanos.

Eu me nego a ficar sentado diante de uma fonte de águas cristalinas – que saem da boca e orifícios de indivíduos marmóreos com semblantes angelicais –, sob uma frondosa árvore num parque, ou até mesmo pretender-se dono de uma humildade que não é minha, forçando-me a conversar com pessoas vitimadas pela fúria dos jornais baratos. Talvez seja por isso que grande parte da literatura cult me provoca, no mínimo, o asco: seus donos, munidos de penas e tinteiros, esboçam um estudo da realidade que não encontra subterfúgios na própria realidade. A filosofia, por exemplo, é ótima para reflexão, mas é só analisar todo seu histórico e se perceberá que sempre foi a filosofia de ninguém; os textos ganharam notoriedade após anos – grosso modo, após o falecimento de seus escritores. A verdadeira literatura é aquela capaz de atingir a todos, pois todos nós temos o famigerado “amor à sabedoria”. Amor este que vai desde conversas de bar, até o questionamento que remonta à Hamlet, “to be or not to be?”.

Sempre antes de postar nesse blog, não muito diferente do Kase, esperava até o momento em que as idéias para a próxima postagem maturassem, a fim de que eu não publicasse um material chulo, de que me envergonharia semanas posteriores. O processo de maturação, entretanto, é longo e não possui um prazo. Há, então, 3 alternativas: esperar o devido instante; não esperá-lo, esforçando-se para simulá-lo; não esperá-lo, não esforçando-se para simulá-lo. Tinha em mente publicar algumas resenhas de filmes que me puseram numa discussão atroz comigo mesmo. Antes que eu o fizesse, porém, ao voltar pelo caminho que costumo fazer na ida à minha casa, olhei aquelas pessoas que compõem o cenários outrora tomado pela feira, e me pus numa discussão mais feroz ainda.

O caminho, que inicia com um amontoado de sacolas de lixo – de onde é possível sentir um ar abafado e pútrido –, é como uma calçada gigante por onde transitam pessoas, carros, motos, bicicletas e, também, pessoas. O comércio local é variado e destina-se desde à produção de pães e bebidas até a oferta de frangos e de carne bovina. É como, logo, se o cheiro daqueles sacos de lixo se perpetuasse por toda extensão do local, fato que justifica o excessivo número de cães e pombas. À noite, quando as lojas se fecham, os bares dão vida ao lugar, atraindo homens e mulheres desejosos do esquecimento do sofrimento diário, e da loira mais gelada. Uma senhora, com seu 1,55m de altura, pede que um rapaz de aproxime e divida uma cerveja com ela. O clima fica tenso, eu me afasto e não sei que desfecho aquela história teve. Mais adiante, um grupo de garotas se amontoa atrás de um orelhão, como se estivessem prestes a fazer a primeira ligação de suas vidas. Riem histericamente, com as mãos cobrindo as bocas abertas, enquanto um homem, no orelhão contrário, tenta, ineficazmente, repreendê-las com olhar de desaprovação. Numa antiga perua, um senhor anuncia a venda de suas “pissas”, conversa com os fregueses e não percebe que é motivo de riso dos transeuntes, dotados do obsoleto espírito dos gramáticos. Ainda há movimento na padaria, e à sua frente uma banca de frutas exibe seu material colorido...

Não é preciso incorporar a animosidade dos participantes do Terceiro Setor. Na realidade, seria de péssimo gosto essa adoção, pois só confirmaria mais ainda o preconceito e a falta de respeito pela alteridade. As formas de inspirar-se são inúmeras, e até parece um pouco egoísta denominar aquela que realmente me importa; todavia, o olhar que não se dirige ao ser humano, e que o descreve em palavras, não passa da cegueira dos teimosos, inconsistentes e fúteis. O homem é uma parte ínfima do projeto que se chama vida, assim, se ainda somos deficientes em observá-lo e entendê-lo em sua completude, que sentido faz viver?