Panoptismo no centro de São Paulo
A vigente prefeitura de São Paulo, em parceria com a Telefônica – sim, a própria – instalou treze câmeras em pontos estratégicos do centro da cidade homônima. Com a prerrogativa de atuar em nome, e pela melhoria, da segurança, a ação cooperada entre cidade e estado, faz suscitar discussões sobre o que é público e privado, e, por conseqüente, as mazelas metropolitanas, outrora filhos renegados pela mídia, que passam a ganhar publicidade. Esta, diferindo no que tange à massificação dos veículos de comunicação, é predominantemente monológica, servindo-se como estudo aos olhos de poucos, senão espetáculo circense duma platéia de aficionados pelo já pragmático dia-a-dia. Em outros países, em que a monitoria dos principais centros urbanos se fez presente, grupos de diretores amadores transformaram esse estorvo em objeto de apreciação, contemplado sobre a ótica da arte.
Criado por Jeremy Bentham, em 1789, o Panóptico foi um projeto de prisão modelar para a reforma intelecto-social de detentos. A arquitetura, interessantíssima, dispunha uma torre no centro de um espaço circular, ao redor da qual se faziam presentes as celas, todas com uma completa abertura para torre, e outra para o ambiente externo. Assim, os responsáveis pela vigília dos presos, podiam ver o que os internos faziam, sem que estes o percebessem, uma vez que as janelas da torre era cobertas por uma espécie de persiana, permitindo o olhar somente dos que se encontrassem em seu interior. A vigilância é, portanto, a pedra angular do Panóptico, dado que nos presos se instalava a constante sensação de inquietude por não saber se havia, de fato, alguém a os observar, restando-lhes os bons modos, evitando punições, aplicadas em última instância.
As paredes de concreto criadas por Bentham foram, posteriormente, teorizadas pelo filósofo francês Michel Foucault, em seu livro Vigiar e punir, 1975, no qual é traçada uma linha histórica dos sistemas de punição e encarceramento, desde as ditas civilizações bárbaras até as barbáries das sociedades pós-modernas. A despeito do panoptismo, Foucault esboça possíveis aplicações do Panóptico nessas mesmas sociedades, transpondo a torre central para todos os lugares, reconstruindo-a como uma espécie de onipresença, dada através dos sistemas tecnológicos que surgem incessantemente. A liberdade, que nunca atingiu sua completude, restringe-se à moral e ética sociais, arrebanhando o gado dos detentores do poder. A liberdade, não obstante, não se difere de sua antítese; antes, ambas incorporam-se dando corpo a mais um monstro contemporâneo.
O reality show do centro de São Paulo, como alguns jornais tem noticiado a instalação das câmeras, principiou revoltas e desaprovações dos que transitam pelas áreas filmadas, pois, bem se sabe, sua imagem social é construída cautelosamente com máscaras de botox, bolsas falsificadas Louis Vuitton, etiqueta apreendida nos programas femininos e citações que variam desde Nietzsche a Kant. Diferente de imagens clássicas, dotadas de signos e toda aquela baboseira aprofundada pelos lingüistas e pela semiótica peirceana, elas são instáveis, logo, passíveis de uma ligeira e inconveniente transgressão de atos, então qualquer deslize nos bons modos resultará na gravação, assistida por gargalhadas histéricas e semblantes curiosos. Estranho que esses personagens, quando transpostos para o lado dos expectadores, divertem-se com aquilo que mais abominam, sendo, assim, uma doce e bizarra metáfora do axioma “pimenta nos olhos do outros é refresco”.
Talvez haja o esquecimento generalizado que a moral judaico-cristã criou um deus que observa tudo e todos, a qualquer momento, em qualquer lugar. Então, segundo esse desvio de conduta, é válido sentir-se incomodado ao ser filmado pela câmera dentro de um elevador, e conformado pela existência dum deus voyeur, que assiste de camarote ao ato do coito; é justificável considerar esse deus como uma sorte de entidade mítica megalomaníaca, responsável por todas as ocorrências que se dão desde o momento da criação, mas é totalmente execrável o poder que se atribui às instituições humanas. É como se houvesse a necessidade da eterna transferência de características, inerentes aos homens, à deidade, cujo nome varia – sabe como é, evitar lugar-comum. Deus sempre esteve no centro de São Paulo, mas, por ignorância ou comodismo, sua presença não era incômoda; era até benéfica.
Sempre se estudou o caráter humano dos imortais deuses da Grécia antiga. Sempre se criticou os politeísmos das sociedades arcaicas. Nunca se percebeu que a história não muda; o que muda são apenas os nomes.
2 Comments:
mudam os nomes, as desculpas, mas fica a goiabada cascão.
=*
Um deus voyeur, que mandou o empregado Gabriel comer a mãe-de-todos e acabou por ter um filho hippie-emo de proveta. We nail ya to a post, hip!
Eu simplesmente amei esta definição.
Alguém se sentiu ofendido?
E ver dois miseráveis se sodomizando embaixo de um viaduto fedendo a etanol, isso ofende?
Sim, madame, isso se chama falta de sexo. Ou excesso de vaidade. Sabia? Trauma obnóxio tamanho em revelar a natureza podre oprimida dentro dos seus seres maquiados por paradigmas e preconceitos; oh não!, o que Ele diria disso?
Animais modernos, monstros contemporâneos, macacos em black-tie; máquinas hidráulicas moídas num triturador de lixo: isso sim, me é tão ofensivo!
Não seu deus, não seus olhos panópticos, não as câmeras que me observam aqui. Não a justiça dos homens nem o sadismo dos deuses. Aqui, em seu templo, só o Triúnviro me julgará.
Por meus frutos me conhecereis.
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