domingo, outubro 08, 2006

Volta à sociedade produtiva

Lembro-me que há um certo tempo, num post do Kase, intitulado “Viva a sociedade produtiva”, esbocei alguns dos problemas que, na época, considerava cruciais às sociedades pós-modernas, no que tangia ao aspecto econômico. Escusado dizer que muito do que foi reproduzido no texto, que colocarei aqui a título de comparação ideológica, foi resultado de minha parca erudição, acumulada por pouco tempo, e não contava com subsídios concretos com os quais poderia me referir, a fim de que minha peça tivesse maior verossimilhança. Como me habituei, aqui no A Cabeça e Machado, a editar meus textos, pois, como todo partidário do perfeccionismo – a prática constante e metódica da escrita, pintura e outros tipos de arte –, creio no aprimoramento de resultados, que sobrepujam anteriores. Assim, inserirei os parágrafos do texto anterior, com o intuito de consertar alguns termos errôneos, endossar outros, terminando, em fim, por ajustar as linhas do texto que, confesso, é um dos meus favoritos. Os ajustes também não deixam de ser uma auto-análise, ausente em meus dois blogs.

“Mais do que nunca percebo quão nocivas são as ideologias que definem as diretrizes de nossa sociedade, seja no tangente à política, religião, educação ou alimentação. Ideologias estas, criadas por uma espécie de casta superior, que engolem todas as diferenças culturais e humanas, determinando o que passa a ser ético, muito embora sua moralidade seja dúbia.”

Tenho de interromper esse parágrafo por aqui. Sempre gostava de criticar as tais “castas superiores”, por talvez elas representarem uma espécie de monstro sociológico, que cismava em pisar nas parcelas menos abastadas. É claro que o etnocentrismo era o cerne desses constantes assaltos. A interrupção, contudo, não foi feita com fins de análise psicológica. Antes, preconizo a constatação de que todo e qualquer tipo de ideologia emana do grupo social em que o indivíduo se localiza; não se trata de um grupo, produtor de idéias, cujos poderes possuem tal amplitude. Pegue uma sociedade tribal, como aquelas estudadas por Malinowski, e será facilmente perceptível que, mesmo estando todos a desfrutar das mesmas situações de vivência, diferindo apenas em suas funções desempenhadas, um fato como o suicídio, por exemplo, é perfeitamente compreensível e possui, inclusive, rituais que precedem sua feitura. Ou até mesmo no utópico comunismo, após extinguir os detentores dos meios de produção e sua preciosa mais valia, age-se segundo um padrão pré-determinado, e todos se encontram num mesmo patamar!

“Nos programas infantis, crianças contemplam a sina de serem bons filhos, acatando a tudo que lhes é proposto, afinal, deve-se respeitar a máxima de que "os pais só querem o seu bem"; adolescentes, nauseados pela pobreza de uma dita cultura na televisão, esperam ansiosamente pelos novos episódios de Malhação, a fim de que possam conseguir algumas dicas para os seus pseudo-relacionamentos, além de lá se encontrar a cerne da moda da hora; adultos, após cansativas jornadas de trabalho, sentem-se extasiados ao verem os rostos de porcelana de Bonner e Bernardes, respondendo, sem hesitar, ao ''boa noite!'' de cada um dos apresentadores do informativo Jornal Nacional. Durante os intervalos das atrações supracitadas, abre-se um novo leque inebriante, que hipnotiza as classes A, B e C: os comerciais, artífices capazes de despertar o mais sonolento dos obesos com seus produtos de última linha e uma sensualidade implícita do ato de comprar esse ou aquele produto.”

Diz-se, usualmente, que os adolescentes são o canal que concentra o maior fluxo de ditames e imperativos. Na realidade, são as crianças a confluência dos mesmos, mas a constância do ludus atenua muito do que os adolescentes sofrem de resquícios da infância. A educação infantil é um dos maiores meios de coerção já criados. Além de coercitiva, é exterior e regular, ou seja, configura-se como fato social, segundo Durkheim. Exterior, a partir do momento que não depende da criança a aceitação da educação; ela, incapaz de fazer algum julgamento entre o querer e o negar, em seus primeiros anos de vida, aceita o conjunto de ordens e meios de proceder, perpetuados pelos seus pais, e que se perpetuarão com seus filhos, o que lhe garante a regularidade. Sobre os jovens e adultos, que “esperam ansiosamente pelos novos episódios de Malhação” ou que respondem “sem hesitar, ao 'boa noite!' de cada um dos apresentadores do informativo Jornal Nacional”, eles não devem ser alvo de crítica. Mais uma vez etnocêntrico! O consumo de lazer deve ser despreocupado, mesmo quando oferece uma porta aberta à nociva opinião já fabricada pelos ditos formadores de opinião. Quanto às propagandas, elas são, sem dúvida, um dos principais meio de erotizar os diversos públicos-alvo. Já no métier publicitário, posso afirmar que há meios e meios de se propagar uma marca, e que em todos neles, há uma sensualidade intrínseca, responsável por muito da graça e beleza das campanhas.

“O começo da vida em si já propõe a luta, o aparecimento de características que permitam a um dos espermatozóides, pela sua competência produtiva, alcançar e fecundar o óvulo primeiramente revela, em traços genealógicos, que se realmente há algum deus por trás da vida, ele é satírico. Esqueça toda aquela baboseira de amor às massas, pois, análogo à situação que se dá no útero da mulher, poucos são aqueles que, por mérito ou não, alcançarão algum lugar de prestígio numa empresa, ou seja lá onde pretendem dar vida ao capitalismo selvagem. A criança, se não bastasse competir com a vizinhança por brinquedos, mimos e zelos, deve-se englobar, na escola, num grupo onde tem iguais que, posteriormente, se desenvolverão nas chamadas tribos urbanas, e mostram-se, desde esse momento, um rascunho delas. Aquela, também, que não assimilar o bê-á-bá é repreendida, fica de castigo, criando em sua complexa inconsciência infantil, espaços para internalizar revoltas e dramas.”

Vi, esses dias, num documentário do GNT, um psicólogo dizer que o estágio mais tenso da vida humana, é aquele em que o ser ainda se encontra dentro do ventre materno, suscetível às inconstâncias do mundo externo, tendo de lidar, também, com o ambiente aquoso interno. Fá-lo sozinho, pois, em momentos posteriores, encontra auxílio dos amigos, mas, mesmo assim, faz questão de recorrer a doutrinas existencialistas: “não pedi para nascer”. Pode contar, não obstante, com a (in)existência de Deus, deidade que socorre os aflitos, angustiados e infelizes. O Deus que ao mesmo tempo é o criador e mantenedor de toda sua criação, é aquele que tiraniza o império que está sob seus pés, fustigando-lhe com pestes e infortúnios... A criação do diabo foi um feliz acontecimento.

As tribos urbanas, que podem ser reconhecidas a partir de sinais que não os cortes de cabelo e roupas destoantes, revelam-se como principal meio que faz as diferenças e particularidades ganharem vida. Conflui semelhantes, dando-lhe a válvula de escape necessária a seus opressores cotidianos.

“O jovem é, sem sombra de dúvida, o mais atingido pela sombra ideológica. Ainda no ambiente escolar, persistem as implicâncias com as notas vermelhas, e escolas como adventistas e católicas surgem como freio a novas tendências que preocupam os pais, como, por exemplo, roqueiros e góticos. A pessoa tem sua humanidade avaliada a partir de seu trajes, vestes e trejeitos. O uniforme padroniza todos e cria um exército de supostas mentes sãs num ambiente hostil, convidativo à orgia intelectual. Não obstante, o preconceito, que é trazido, ainda semente, de casa, encontra férteis terras para aflorar-se e transformar-se em abominação. O preconceito, não se esquecendo, é como uma cobra que devora sua outra extremidade: aqueles que já se encontram estereotipados diminuem-se ainda mais em seus círculos de amizade e convidam outros a participar do mesmos. Temos, desse modo, mais gays querendo fazer moda, críticos no jornalismo, alienados na construção civil e libertinas como garotas de programa.”

Já corrigi minha postura quanto à quantidade de imperativos relacionada a essa ou aquela idade. Entretanto, faz-se necessário impor-me categoricamente à minha exemplificação de “espiral do preconceito”. É claro que, assim como a violência, preconceito gera mais preconceito – loiras, estigmatizadas, impõe-se no “pedaço” social das morenas; homossexuais desferem seu ódio contra o comportamento heterossexual, etc. Isso não significa, porém, que esses alvos de idéias pré-concebidas vão se fechar cada vez mais em seus círculos de afins, excluindo a possibilidade de conhecer elementos que difiram de seus gostos. A realidade é outra, e a compreensão é uma importante ferramenta social, cuja presença vem se estendendo conforme o passar do tempo.

“Passada a época tenra, que é a jovialidade, muros cercam fulano ou cicrano, reduzindo-o em simples mão-de-obra. Não há empregos suficiente para filófosos nem sociológos, querem, sobretudo, pessoas trabalhando na área de telemarketing e em tantos outros ramos em que o desgaste psicológico é tamanho. A única aspiração dos trabalhadores é que o ordenado aumente, podendo, assim, ser como o elenco da novela das oito. É a moral do espetáculo -- em que os valores se perdem, acentuando-se a preocupação com o parecer -- ganhando vida nas rotinas de tantos severinos e macabéas. Reclama-se de que o advento da globalização substituiu o homem pelo robô, mas, analizando-se friamente, percebe-se que há a de troca um robô por outro. A única diferença, entretanto, é que o primeiro é passível de desgastes musculares e a velhice é seu maior vilão.”

O homem é, de fato, um robô orgânico, e a velhice, sem dúvida, é seu maior vilão. Asilos, manicômios e outras casas em que se propõe a reforma ou conformidade mental, são umas das principais ameaças, impostas, desde cedo, aos trabalhadores. Seu principal medo, entretanto, é de ordem financeira. Mexa no salário de um trabalhador e o veja acatar aos desejos mais abjetos. Não é de se espantar a observância dessa constatação, dado que não vivemos em época feudal, e que o escambo não se faz desde os tempos de colônia. Outra coisa: telemarketing é sinônimo de expiação de pecados, e o digo por experiência própria.

“A sociedade alternativa desaparece em meio à produtiva. Em poucos casos a segunda é justificável: educação e saúde. A primeira restringiu-se única e exclusivamente à música, deixando de lado o engajamento social. Estudos do IBGE corroboram o fortalecimento dessa idéia de que para estar incluso socialmente, deve-se produzir: a pirâmide etária tem seu meio alargado, enquanto a base estreita-se e o pico ganha inexpressivo aumento. A idéia de ter filhos chega a ser absurda e remonta ao clássico egoísmo observado em tantas passagens da História; a terceira idade vira estorvo ao Estado, pois é provida de aposentadoria, entre outros (des)serviços. É claro que existem exceções, não nos esqueçamos delas! Essas parecem se restringir aos mesmo que formulam as ideologias, entretanto. Tantas madames subtraindo dezenas de suas idades através de cirurgias plásticas; tantos senhores bem-sucedidos; alguns políticos bem intencionados; um mendigo num programa de tevê.”

Já na parte final dessa análise, que carece de minúcias, feita para provar algo para mim mesmo, que desconheço, consto que desejo viver até quando meus órgãos decidirem falhar. Outrora, discípulo da busca à beleza, ansiava que meu corpo parecesse bonito em meu funeral, fator possibilitado somente pela alcançar de, no máximo, 40 anos de idade. Como asseverou Camões, em um dos decassílabos de Os Lusíadas, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mais importante que a preocupação estética que preconizo – bem sabem meus amigos como a preconizo –, quero manter-me fiel à saúde mental e física, mesmo que isso não se reflita em músculos ou ausência de gordura em regiões localizadas, porque quero estar junto a muitos outros que engordarão o topo da pirâmide etária supracitada, responsáveis por uma possível revolução na maneira de se pensar. Escaparemos e recorremos aos chavões, continuaremos a ser estorvo ao Estado; viveremos autenticamente, entretanto, mais vivos que nunca, excluindo a hipótese duma vida posterior para que possamos, enfim, desfrutar dos prazeres negados em outras épocas em detrimento da aquisição de dinheiro.