terça-feira, janeiro 23, 2007

Qualidade de Vida

Nunca antes foi tão difundida a expressão “qualidade de vida”. Se outrora o termo praticamente inexistia, tendo seu cerne oculto por véus postos pela má-vontade de preguiçosos – aqueles em cujas rotinas não havia ao menos a prática da ginástica mental –, agora, junto às ameaças ao planeta, essas três palavras carregam uma importância única. Antes, todo aquele que se entregava a uma dieta alimentar regrada – evitando alimentos danosos à saúde, como frituras, refrigerantes e açúcares-em-demasia –, era tido como natureba, ou, em linhas gerais, o chato. Figura mais execrável que os anti-tabagistas, o natureba não se ocupava em discutir sua dieta com aqueles que não a praticavam; preferia servir-se no buffet de maneira racional, sentando-se em sua cadeira e focando-se apenas em seu prato (verdade seja dita, sempre que a atenção do próximo se esvaece com a conversa com outrem, nossos olhos, quase que imediatamente, voltam-se às escolhas alimentares do mesmo). Eis que os noticiários passam a emitir uma série de boletins diários, pedindo que a população atente a esses detalhes que nos estão arraigados, e que são difíceis de ser digeridos.

Os tais naturebas continuaram fiéis a suas doses costumeiras de proteínas magras, saladas e frutas, enquanto o resto do mundo tenta passar por uma adaptação que, a seus olhos, soa mais como um absurdo. De seres habitantes dos sombrios calabouços do reino da acelga, passaram a possuir o status de semi-deuses, podendo, inclusive, habitar um Olimpo construído só para eles. Isso, pois, na maioria das vezes, a maneira apropriada de se alimentar, grosso modo, alia-se à prática de algum tipo de esporte, garantindo ao praticante, assim, corpo e mente sãos. Os comentários maldosos acerca dos que prezam pela qualidade de vida continuam maldosos e insinuam mais coisas do que sonham nossas vãs filosofias, entretanto, o desejo em se comportar como um deles aumentou exponencialmente, embora a força para fazê-lo continue estagnada, próxima aos círculos inferiores do inferno dantesco.

Que faz bem para o corpo, todos nós sabemos, mas até que ponto é louvável entregar-se à tal qualidade de vida? Questiono isso, porque há um ano dedico-me à limitação na ingestão de calorias diárias, entrei numa academia e reeduquei-me quanto a um monte de outras crenças. Os resultados são visíveis; estou, em partes, contente com que alcancei, mas o excessivo número de pessoas que estão de igual forma bem, comendo aquilo de que abri mão, porém, é um fantasma que me assombra diariamente. É fato que minha saúde está sendo poupada de uma série de infortúnios, mas a total abdicação dos antigos e perigosos prazeres nutricionais me faz querer prová-los, a fim de que sacie minha vontade. Domo os instintos e me pergunto, “quem terá mais qualidade de vida: eu, que me privo de uma gama de alimentos prejudiciais ao corpo; ou eles que ingere esses ‘vilões corpóreos’, mas sorriem, contentes, após a boca esvaziar-se de néctares doces ou provarem pratos quentes e saborosos?”

É preciso ter determinação para adotar a tal qualidade de vida, pois, no primeiro deslize, pode-se voltar aos velhos costumes. Mas esse termo, como tudo aquilo que nos é informado pelos veículos de comunicação, é produto de alguns geniosos sedentários. Com a morte das anoréxicas, foi-se dito que o “imperativo do corpo magro” tenderia a desaparecer, e que outras formas de beleza seriam valorizadas ao serem redescobertas. Não é isso que se percebe: pede-se o corpo esbelto de sempre, mas de maneira eufemística, as expressões agora são outras, todas voltadas ao tema central dessa postagem: a qualidade de vida.

Percebe-se, analisando-se desse modo, que a privação acima descrita é fortuita apenas nos casos em que a insatisfação com o corpo é fator determinante ao “possuinte” e ser possuído. Existem, sim, variadas belezas, e o prazer não se encontra numa porção ínfima de comida posta no prato, nem numa pílula que infla seu estômago, simulando um estado de saciedade. Se o relacionamento consigo próprio e com um membro social está fluindo, não há motivo, creio, para abandonar os vícios e entregar-se a uma dita tendência. A felicidade, com efeito, deve ser a verdadeira tendência e reinar sobre todos os outros imperativos com os quais nos deparamos com freqüência.

Esqueça tudo isso que falam sobre aquecimento global e o reposicionamento do homem perante essa nova realidade. Também tida como tendência, a “vida verde” deve ser algo que vá ser praticado, em sua plenitude, apenas por nossos netos e bisnetos quando poucos recursos lhes restarem no planeta. De igual forma, o alimento não será transmutado em nome de um bem maior conquistado num presente doloroso.

Observamos as crianças brincando e lhes invejamos a inocência e carência de preocupações inerentes ao “mundo adulto”. Talvez elas sejam contentes pelo simples fato de não saberem que o são.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

De Cicarelli a Saddam.

Segundo o dicionário Aurélio de língua portuguesa, censura é “1. proibir a divulgação, ou a execução de; 2. fazer cortes em; 3. criticar, notar; 4. Fazer reparos sobre falha, defeito, omissão, etc. em; condenar, reprovar; 5. Admoestar com energia; repreender; 6. Demonstrar reprovação, crítica, ou ressentimento, por meio de gesto, olhar, etc.; 7. Reprochar, exprobrar; 8. Proibir (filme, livro, etc.)” Com tantas opções que nos são dispostas, fica até mais fácil compreender a que ponto chegou os meios de controle brasileiros, que nos mostraram, mais uma vez, quão inconsistentes e falhos são ao bloquear o site do Youtube, no dia 9 de janeiro. Não obstante, lançaram mão de táctica totalmente obsoleta que remontou aos períodos de caça-às-bruxas, pondo na fogueira milhões de usuários que não possuíam nenhum tipo de vínculo com nossa modelon e seu namorado, outrora desconhecido. Ficou provado que o comodismo de se atacar as conseqüências – sem, contudo, analisar-se primeiramente as causas – ainda é imperativo quando se trata de assuntos que merecem uma devida reflexão.

“1. proibir a divulgação, ou a execução de.” Todos pensavam ser rumor que alguns desembargadores e juízes, responsáveis pelo caso acima citado, fossem, de fato, bloquear o site de compartilhamento de vídeos, que recebe mais de milhões visitas por dia. Assim como se especulou sobre um eventual bloqueio a ser feito contra o orkut, a hipótese de ter o Youtube fora da rotina de acesso à Internet, assustou a muitos que se viam consumidos pelo hábito. Quando o fato foi oficializado, essas mesmas pessoas que não esperavam por tal desfecho, contrário às suas expectativas – afinal, o boato do orkut, como todo boato, mostrou-se irrisório, sendo abatido por desculpas técnicas –, mobilizou-se individualmente, atirando para todos os lados: queria-se boicotar a mtv, xingaram a Cicarelli, seu namorado, botaram os nomes na boca do sapo, enfim, serviram-se de toda sorte de mau augúrio imaginável a fim de que, tendo na revolta sua santa válvula de escape, conformassem-se com a terrível e cruel realidade que se esboçava num horizonte próximo: a vida sem o Youtube.

“2. fazer cortes em.” Esse tipo de comportamento, entretanto, sob diversos aspectos, aproximava-se do mesmo adotado pelos censores, umas vez que, se estes não mobilizaram para apurar os verdadeiros culpados e aplicar a lei a quem se devia, aqueles, ainda dominados por uma infantilidade ímpar, típica de revolucionóides anti-impérios, determinaram que a saída mais sábia era o boicote. A emissora, já sentindo o bolso apertar, vazio, prontamente notificou um comunicado em que dizia que, “a maioria desses protestos no fundo compartilha dos mesmos desvalores que quer atacar pois fomenta a censura a um canal de televisão”. Correto, mas esses tais desvalores não são compartilhados em sua completude, como dito acima, pois a censura foi imposta, e o boicote, mesmo surgindo de uma minoria – irradiado, posteriormente, à massa de desocupados –, constitui uma ação livre ou, como muitos a têm chamado, “uma ação democrática”.

“3. criticar, notar” Democrática ou não, ainda acho de péssimo gosto querer mostrar toda e qualquer tipo de ideologia através de um simples boicote. Esses alcançam seus devidos propósitos não quando são dirigidos a esses fins. O buraco é mais embaixo. O boicote se faz sentir latente em um universo menor de pessoas, onde o número de afetados tende a exceder o total composto pelas pessoas desse mesmo universo. Não espere, num futuro próximo, que as grandes corporações dêem ouvidos aos anseios de seus consumidores através de protestos e boicotes. As soluções civilizadas e metodológicas revelam-se as mais eficazes, pois não representam problemas à ordem vigente, muito menos ameaçam a soberania do Estado. Por que não, no caso da Cica, parodiar o fato, aproveitando do momento para que se divulgue coisas que nos são muito mais importantes? O kairós, elemento que configura a oportunidade nas relações humanas, não é necessário somente no mercado da fala; antes, prolonga-se por toda cultura (humana).

“4. Fazer reparos sobre falha, defeito, omissão, etc. em” Após os tais 20 mil e-mails recebidos pela MTV, as centenas de reclamações em blogs e sites da Internet, o juiz resolveu voltar atrás e mandou desbloquear o Youtube... Tá, vamos recomeçar esse parágrafo a partir do segundo período: Após perceber que a medida não passava de um paliativo, e que de nada adiantava bloquear o site dos vídeos – pois, descendentes de Adão e Eva, padecemos da mesma compulsão que nos leva a consumir o proibido – (sempre existem alternativas), o juiz voltou atrás e mandou desbloquear o Youtube. Pronto, todos agora já podiam ver o vídeo do Saddam sendo enforcado, além, é claro, das tradicionais baboseiras e utilidades oferecidas pelo tubo.

“5. Admoestar com energia; repreender” Por falar em Saddam, talvez ele e a Cicarelli, juntos, protagonizassem um melhor desempenho na praia, rendendo não só mais comentários e trabalho para assessoria de imprensa de ambas as partes, como também uma repercussão em escala mundial. Não bastasse o ditador morrer, quis-se ver como que se deu o momento fatídico de sua morte. Uma das pessoas presentes na execução, aproveitando do máximo que a convergência digital oferece aos celulares, filmou os momentos anteriores, correntes e seguintes à morte do ex-ditador. Entrementes, uma torcida velada, ao ver tal vídeo, torcia em seus âmagos, que aquela alma fosse condenada e mandada aos círculos inferiores do inferno. Essa prece, todavia, não podia ser completa sem se ver o estado deplorável em que ficou o corpo após a forca, exibindo sangue em locais estratégicos, além de uma angulação sobre-humana no pescoço.

“6. Demonstrar reprovação, crítica, ou ressentimento, por meio de gesto, olhar, etc” No Oriente, pelo menos, instituiu-se a morte ao responsável pelo vídeo, sendo ele execrado por ter massificado um fato que causou o regozijo aos habitantes daqueles lados. Melhor assim, sem rodeios, mostrou-se que, mesmo causando guerras incessantes, aquele povo não confunde as coisas e mantém a hombridade e a humanidade. Aqui, por enquanto, age-se hipocritamente, remediando a parte sã do corpo, enquanto a débil convalesce em sua fraqueza.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Ano novo; violência, controle e sensacionalismo velhos.

Mais um ano que se passa, e as listas de promessas vão-se enchendo novamente. Se não bastasse não cumprir cerca de metade das anotadas no ano anterior, uma quantidade absurda de pessoas apela não só para esses famigerados mecanismos metafísicos de troca, mas também cultuam uma série de outros aparatos que não encontram subsídios na realidade, e que prometem resultados positivos depois da realização de determinadas tarefas – que incluem a ingestão de comidas diversas, uso de um número específico de objetos e banhos na cândida água do mar (o verdadeiro esgoto tupiniquim a essa época do ano): a saga hercúlea dos severinos e macunaímas. O ritual se repete todos os anos: um corpo constituído pela massa dos brasileiros comuta dos resquícios do espírito natalino, fortificado pelas desilusões e decepções de outrora, encontrando no aparato sonoro-luminoso a maneira pela qual se chegará aos deuses – porque, hão de convir, lançar fogos-de-artifício, analisando-se sob o prisma do ceticismo, não faz o menor sentido.

E o que se pôde reparar nos segundos finais de 2006? Que a nossa queria e mui amada Rede Globo de Televisão foi o veículo que não só acumulou a maior quantidade de renda – o que não é de espantar ninguém –, humildemente destinado a parte da festa realizada na Avenida Paulista, como também foi o veículo que se perpetua como dono de várias redes de poder, que muitas vezes passam imperceptíveis devido ao hábito.

O tempo, já dizia Kant, é matéria etérea que de fato não existe. É, com efeito, projeto de nossas mentes que não conseguem entender os ciclos em sua completude. Nossa Rede Plim-Plim, já ciente disso, não deixou que os ponteiros dos relógios Brasil afora não coincidissem, o que poderia gerar desunião e diferença nos instantes em que se desejaria “Feliz Ano Novo!”. Sim, percebam a gravidade que esse problema poderia causar! Assim, instantes antes da virada do ano, a emissora fez sua própria contagem regressiva que foi seguida à risca nas principais cidades em que os fogos brilhariam nos céus estrelados. Como dito, a falta de percepção pode fazer com que um acontecimento desses soe fútil e banal; da mesma forma que, tendo em mente o histórico da Rede Globo, o esquema de poderes e influência supranacional fica patente através dessas práticas lúdicas.

Enquanto isso, a tal solidariedade, que impera nos dias finais do ano, revelou-se hipócrita duas vezes. A primeira, já de praxe, que faz com que a visão de um mendigo na rua seja extremamente poética, e a ânsia em ajudá-lo sobrepuja a ação que de fato acontece; A segunda, por causa da execução do Saddam, realizada antes das “celebrações que tomam espaço no Oriente Médio”. Para decepção das emissoras de televisão, as cenas dos executores encapuzados, pondo a corda em volta do pescoço do ex-ditador, e o fato consumado, quando Saddam já estava morto, não entraram para as retrospectivas. Para corrigir o problema, a imagem foi exibida sucessivamente nos canais de redes de transmissão aberta e fechadas, rendendo, inclusive, um bônus nas horas seguintes: o enforcamento, literalmente.

Como um pouco mais de violência nunca faz mal, o pandemônio que acontecera em São Paulo repetiu-se no Rio de Janeiro, dessa vez em proporções maiores, envolvendo inocentes e causas que até então são desconhecidas. Ônibus são incendiados, pessoas são mortas, cabines dos policiais civis são fuziladas e o buzz se revela útil também nesse cenário – longe de ser buzz marketing, todavia. O presidente, enquanto se preocupa em deixa visível sua faixa presidencial – que remonta aos desfiles de miss – apela ao sensacionalismo, dizendo que tais ataques foram os ataques terroristas mais violentos que já viu. É claro, soa bonito na posse, mas revela-se argumento débil e, como todos nós sabemos, palavras ainda não são capazes de mudar os rumos do rio da história por aqui.

Coincidência ou não, cada vez mais o mundo assimila-se à distopia 1984. Temeroso ou não, cada vez mais considero George Orwel um visionário.