Qualidade de Vida
Nunca antes foi tão difundida a expressão “qualidade de vida”. Se outrora o termo praticamente inexistia, tendo seu cerne oculto por véus postos pela má-vontade de preguiçosos – aqueles em cujas rotinas não havia ao menos a prática da ginástica mental –, agora, junto às ameaças ao planeta, essas três palavras carregam uma importância única. Antes, todo aquele que se entregava a uma dieta alimentar regrada – evitando alimentos danosos à saúde, como frituras, refrigerantes e açúcares-em-demasia –, era tido como natureba, ou, em linhas gerais, o chato. Figura mais execrável que os anti-tabagistas, o natureba não se ocupava em discutir sua dieta com aqueles que não a praticavam; preferia servir-se no buffet de maneira racional, sentando-se em sua cadeira e focando-se apenas em seu prato (verdade seja dita, sempre que a atenção do próximo se esvaece com a conversa com outrem, nossos olhos, quase que imediatamente, voltam-se às escolhas alimentares do mesmo). Eis que os noticiários passam a emitir uma série de boletins diários, pedindo que a população atente a esses detalhes que nos estão arraigados, e que são difíceis de ser digeridos.
Os tais naturebas continuaram fiéis a suas doses costumeiras de proteínas magras, saladas e frutas, enquanto o resto do mundo tenta passar por uma adaptação que, a seus olhos, soa mais como um absurdo. De seres habitantes dos sombrios calabouços do reino da acelga, passaram a possuir o status de semi-deuses, podendo, inclusive, habitar um Olimpo construído só para eles. Isso, pois, na maioria das vezes, a maneira apropriada de se alimentar, grosso modo, alia-se à prática de algum tipo de esporte, garantindo ao praticante, assim, corpo e mente sãos. Os comentários maldosos acerca dos que prezam pela qualidade de vida continuam maldosos e insinuam mais coisas do que sonham nossas vãs filosofias, entretanto, o desejo em se comportar como um deles aumentou exponencialmente, embora a força para fazê-lo continue estagnada, próxima aos círculos inferiores do inferno dantesco.
Que faz bem para o corpo, todos nós sabemos, mas até que ponto é louvável entregar-se à tal qualidade de vida? Questiono isso, porque há um ano dedico-me à limitação na ingestão de calorias diárias, entrei numa academia e reeduquei-me quanto a um monte de outras crenças. Os resultados são visíveis; estou, em partes, contente com que alcancei, mas o excessivo número de pessoas que estão de igual forma bem, comendo aquilo de que abri mão, porém, é um fantasma que me assombra diariamente. É fato que minha saúde está sendo poupada de uma série de infortúnios, mas a total abdicação dos antigos e perigosos prazeres nutricionais me faz querer prová-los, a fim de que sacie minha vontade. Domo os instintos e me pergunto, “quem terá mais qualidade de vida: eu, que me privo de uma gama de alimentos prejudiciais ao corpo; ou eles que ingere esses ‘vilões corpóreos’, mas sorriem, contentes, após a boca esvaziar-se de néctares doces ou provarem pratos quentes e saborosos?”
É preciso ter determinação para adotar a tal qualidade de vida, pois, no primeiro deslize, pode-se voltar aos velhos costumes. Mas esse termo, como tudo aquilo que nos é informado pelos veículos de comunicação, é produto de alguns geniosos sedentários. Com a morte das anoréxicas, foi-se dito que o “imperativo do corpo magro” tenderia a desaparecer, e que outras formas de beleza seriam valorizadas ao serem redescobertas. Não é isso que se percebe: pede-se o corpo esbelto de sempre, mas de maneira eufemística, as expressões agora são outras, todas voltadas ao tema central dessa postagem: a qualidade de vida.
Percebe-se, analisando-se desse modo, que a privação acima descrita é fortuita apenas nos casos em que a insatisfação com o corpo é fator determinante ao “possuinte” e ser possuído. Existem, sim, variadas belezas, e o prazer não se encontra numa porção ínfima de comida posta no prato, nem numa pílula que infla seu estômago, simulando um estado de saciedade. Se o relacionamento consigo próprio e com um membro social está fluindo, não há motivo, creio, para abandonar os vícios e entregar-se a uma dita tendência. A felicidade, com efeito, deve ser a verdadeira tendência e reinar sobre todos os outros imperativos com os quais nos deparamos com freqüência.
Esqueça tudo isso que falam sobre aquecimento global e o reposicionamento do homem perante essa nova realidade. Também tida como tendência, a “vida verde” deve ser algo que vá ser praticado, em sua plenitude, apenas por nossos netos e bisnetos quando poucos recursos lhes restarem no planeta. De igual forma, o alimento não será transmutado em nome de um bem maior conquistado num presente doloroso.
Observamos as crianças brincando e lhes invejamos a inocência e carência de preocupações inerentes ao “mundo adulto”. Talvez elas sejam contentes pelo simples fato de não saberem que o são.