Natal e algo a mais.
Faz-se necessário, antes de começar a contar minhas dantescas aventuras, explanar-lhes a situação natalina num momento em que meu avô materno ainda era vivo. Como de praxe, a presença dum espírito idoso na família, cujo reconhecimento e respeito se dá em detrimento de seus atos em vida, propicia a reunião dos integrantes dessa mui amada instituição social. Até parece que todos se reúnem para um último adeus, para que possam então traçar seus caminhos e livrar-se das manias e trejeitos incômodos de alguns parentes. Digo que é praxe, porque são incontáveis as vezes que já ouvi sobre como as famílias se dispersam após o falecimento do ser mais idoso, sejam avós, sejam tios ou mesmo alguém que não divide o mesmo sobrenome, mas que carrega uma importância imensurável nos corações daqueles que se dispõem ao seu redor.
Como dito, com meus familiares a situação se repetiu. Antigamente, reuníamo-nos na casa do irmão mais velho da minha mãe, os parentes maternos e paternos, todos comungando das mesmas aspirações, tomados por aquela situação de bem estar intrínseca ao (antigo) Natal. As crianças corriam por todos os lados, derrubando talheres e ornamentos, as garotas dançavam na garagem – época do hit “boquinha da garrafa”, eu me recordo – os homens cuidavam da churrasqueira enquanto bebiam cerveja e as mulheres se dividiam entre a cozinha e os sofás, frente à televisão – o especial do Roberto Carlos era transmitido na noite de véspera da data natalina. Por uma noite, não havia motivos para brigas, discussões, muito menos era pauta as diferenças entre aqueles que habitavam o ambiente festivo, repleto de luzes. As mulheres da cozinha, não obstante, faziam o máximo que podiam para barrar as crianças, pois estas sempre saíam, aos risos, com os dedos engordurados, resultado dum bem arquitetado plano para roubar a pele que sobrara do peru.
Falecido meu avô remanescente, a festa de natal acabou por se tornar uma obrigação. Tentou-se, sem sucesso, reunir todas as pessoas que costumavam participar na casa do meu tio, mas algumas delas sempre alegavam não estarem bem: motivo responsável por sua estadia em seus domicílios, longe do barulho e excessivo número de indivíduos. Foi como uma grande torre de Babel: se outrora adivinhávamos os anseios de alguém simplesmente por mirar o brilho de seus olhos, agora nem mesmo o diálogo era capaz de solver algumas dúvidas acerca do próximo. Natal passava a ser, doravante, a data em que NÃO se discutia a divisão da herança e posses, além de ser, por conseguinte, um tempo em que se simulava na família uma trégua regrada, metódica e com prazo de validade.
Hoje, superada a crise das heranças, ligamos uns para os outros e desejamos votos de felicidade. Com freqüência não se atende o telefone por medo da insurreição de temas que acabarão arruinando um estado de espírito que faz questão de reviver no 25 de Dezembro. Aqui em casa, em particular, à parte de todos os eventos exteriores, o dia é muito semelhante a um domingo qualquer, dia em que todos os moradores da casa – eu, pai, mãe, irmão, Eros e Princesa – ficam juntos e comem pratos diversificados, ausentes no dias da semana. A diferença fundamental entre o Natal e os domingos, entretanto, é que nestes, nós atuamos da melhor forma que podemos, rindo das piadas mais fúteis, aprovando os temperos mais bizarros e assistindo juntos aos saudabilíssimos programas dominicais; naquele, a linha que prende a máscara ao rosto, afrouxa e um semblante pesado povoa os quatros rostos que se sentam à mesa.
O sentido do Natal pós-moderno não é mais lembrar que existe um monte de gente passando fome enquanto você enche sua barriga com os quitutes sobre a mesa, nem deixar-se povoar pela solidariedade momentânea, responsável por fazê-lo querer mudar o mundo ao seu redor. O verdadeiro sentido do Natal é lembrar, pelo menos uma vez ao ano, que você nunca fez, e não faz nada disso, e que, no fundo, pouco se importa para essas questões ético-sociais.