domingo, setembro 10, 2006

As veredas das feiras

Quando pensar numa expressão cultural legitimamente brasileira, esqueça os carnavais, bares e botecos das esquinas, o futebol de quartas e domingos, o samba e suas belas mulatas, os churrascos que festejam a construção de edifícios e casas de madeira, o negrume da apetitosa e engordurada feijoada, as procissões do Círio de Nazaré, as declarações de Darcy Ribeiro, as passeatas da esquerda, e uma série de lugares-comuns que inundam nossa memória imagética – advindos, sobretudo, dos discursos de autoridade de outrem. Na realidade, não há maior confluência de credos, filosofias e etnias em nenhum outro lugar que não na feira. Também realizada às quartas e domingos, difere do futebol, pois seus atacantes e zagueiros, após cortar as gélidas cerrações da madrugada paulistana, marcam o gol quando posicionam estrategicamente suas esféricas frutas nas sacolas plásticas dos freqüentadores desse evento, que se torna um mundo à parte na incestuosa cidade de São Paulo.

Não falo daquelas feiras situadas em bairros nobres, povoadas por madames, vindas de seus “banhos de lojas”, desejosas por alcachofras e, dissimuladamente, pelo menor preço; ou, como usualmente se apresentam: semblantes que simulam o aspirar de ovos podres. Nem falo daquelas retratadas nos jornais matutinos, em que os vendedores proseiam no mais agradável e correto português -- não apregôo aqui o caráter "etnocêntrico" da língua, disseminado através de numerosos e exaustivos livros de gramática. Essas pessoas, juntas, constituem, antes de tudo, com falsas imagens de simplicidade, um acontecimento anacrônico e destoante ao local tomado por empréstimo. A verdadeira feira é aquela em que os preços dos legumes e vegetais é grafado em manuscrito em porosas placas de papelão, o doce cheiro das frutas se confunde com o dos temperos, a presença da banca de roupas e chinelos é uma constante, e senhoras de idade, sorridentes, permanecem no meio do caminho com seus carrinhos férreos, que garantem a refeição da semana. Se essa intromissão no abismo frutífero parecer petulância àqueles que se acumulam às costas dessas damas, deve-se ressaltar que é a feira o lugar em que elas imperam, soberanas, senhoras de seus destinos, nem que em um fragmento ínfimo de tempo.

Estar em uma feira, é situar-se no olho de um furacão, onde há explosões de cores, trânsito incessante de pessoas e gritos espasmódicos de vendedores contrapondo-se ao olhar cândido de um infante que reflete o pandemônio num instante de brilho e silêncio. Todos sujeitos à temperatura dos trópicos. A quantidade de estímulos é tamanha, que se não houver atenção por parte do transeunte, corre-se o risco de topar num plumoso galo, cujo bico belisca a aquosa superfície de vermelhidão dum pedaço de melancia; ou, pior, ser considerado estorvo por aqueles que fazem a feira acontecer. Assim, caso o cansaço seja um infeliz acontecimento e resolva repousar sobre os já pesados ombros do ser que erra pelas bancas, o melhor é se dirigir a uma das calçadas – pois, bem se sabe, as feiras mobilizam ruas e sobrepujam a ação transitória dos veículos – e repor as forças, ingerindo, por exemplo, um copo de caldo-de-cana.

Pode-se dizer sobre o néctar açucarado, sem correr o risco de ser generalizante, que ele, junto ao pastel, se torna elemento obrigatório na rotina das feiras de São Paulo. Se não bastar apenas ingeri-lo, há opções de mixagem com tal, como os sumos do limão, maracujá, abacaxi, entre outros. Diferente das frutas e legumes que variam, mesmo que sutilmente, em seu aspecto ao longo das bancas, o caldo de cana conterá sempre o mesmo gosto e mesmo valor, estabelecendo no pedaço de rua um protótipo de cartel que remonta ao século XIX. Atrai o maior número de clientes o vendedor que souber ousar e dosar corretamente nessa mestiçagem de gostos que se servem de sutil analogia ao povo brasileiro.

A banca de pastéis é, grosso modo, chefiada por asiáticos – nipo-brasileiros, em sua maioria – detentores da arte e técnica de confeccionar seu produto. Seus olhos, que já não são grandes, estreitam-se, empurrados por tímidos sorrisos, quando convidam o transeunte ao consumo, oferecendo-lhes uma considerável gama de sabores, que vão desde a cremosa e fumegante mussarela, passa pelos exóticos frutos do mar, findando com o crocante e açucarado pastel de banana e canela. Vinagretes, catchups, mostardas e maioneses colaboram para a diversificação do gosto que fica estampado, em manchas de gordura, nos papéis pelos quais os pastéis são segurados. Não obstante, essa banca é mantenedora da fidelidade de seus clientes como as igrejas exercem um fascínio primeiro nos que usualmente as freqüentam. Há, sim, uma disputa interna entre os pasteleiros que logo se revela inútil, uma vez que os consumidores, como camundongos de laboratório condicionados à freqüencia, dirigem-se à banca usual.

Caso esteja cansado das regras infindáveis dos sacolões e quitandas, ou, mais, se estiver exaurido da infindável metodologia social, recomenda-se a ida às feiras dos bairros periféricos paulistanos. Nelas, Dionísio não somente faz acontecer a dança da vida, mas asperge seu vinho sobre os lábios dos feirantes, que inauguram a espécie dos poetas das pós-modernidade, versados de maneira simplória, é verdade; conhecedores das tramas da mente humana, entretanto. Seus amores platônicos, somente no mágico espaço da feira, após ouvirem as canções que beiram à trovadoresca, miram-nos nos fundo de seus olhos, deixando-lhes o sorriso que, marcado à brasa, como muitos outros, ficará eternamente em seus corações. Se parece absurdo assumir que o mundo ideal de Guimarães Rosa toma lugar no espaço cadavérico e sem perspectivas, que é o sertão, então é plausível afirmar que o meu é, sem dúvida, a feira paulistana.