sábado, julho 29, 2006

Transmutação e objeto doméstico.

Se algum dia me perguntassem qual objeto eu gostaria de ser, numa (im)possível outra vida no dantesco mundo dos homens, responderia, tentando me afastar de exageros de raciocínios, que minha predileção seria pelas vassouras. Não que a precedência do artigo feminino me agrade, mas a estrutura física, concluo, foi uma das invenções mais felizes dos designers. O cabo de madeira, simples em sua estrutura, é capaz de agüentar pancadas de variadas intensidades, além de estar em constante comunhão com as mãos dos sonhadores, afinal, utilizar-se de uma vassoura é dar vida ao espírito filosófico: Heráclito não faz sentido algum isolado sob as grossas e pesadas capa e contra-capa das releituras de suas obras, aspirando o pó sulfúrico dos convenientemente procurados; já não é, o próprio ato de varrer, adotar princípios niilistas?; mais, se o idealizador de Baco preconizou a dança da vida, as orgias e constantes devires da existência humana, como que uma vassoura é relegada ao plano do ridículo, onde, junto a ela, repousam os shakespeareanos, clowns, se não políticos?

Em uma de suas extremidades, fios condensam-se formando o emaranhado que eu desejo para a humanidade. Com efeito, estamos quase ou tão unidos quanto eles: todos iguais perante as deidades, seja intra ou extra-fisicamente. Fazemos questão, entretanto, de nos diferenciar com toda sorte de bugigangas que nos conferem mais ou menos status, engordando os ressequidos olhos de quem nos vê, com o intuito de fazer valer a pena a vida, de modo singular; lê-se esse ou aquele livro, a fim de que a retórica discursiva vista-se em trajes de gala, andando por palácios restritos a uma minoria ridícula; uma competição absurdamente imaginária é estabelecida, em que cada um desses fios, mantenedores de sinapses e covalências carbônicas, disputa pela maior carga horária, disputando, por conseqüente, o maior ordenado e aquela televisão de plasma cujo preço tende apenas à descendência; cores de roupas e de peles são motivo para todo tipo de motim, agrupando guetos, agrupando ódio.

Ódio... palavrinha de quatro palavras que não coabita com os milhares de fios. Ou melhor, pode até coabitar, mas, isentando-se de recalques e do próprio medo de suas faculdades, os habitantes da vassoura atribuem a tal sentimento um valor totalmente diverso, utilizado com sapiência nos momentos em que tal uso é demandado. Despendem-no, eventualmente, em macios flocos de lã e de pêlos que ficam grudados em seus corpos. Não obstante, vez ou outra, o ódio é o combustível que pulsa em seus respectivos cernes, devido a imprevisto como o encontro fortuito a cabeça de um marido traidor ou quando se vai parar entre as salivantes mandíbulas caninas. A despeito desses inconvenientes, a vassoura sobrepuja-se outra vez ao espírito humano, dado que, mesmo sendo mãe gentil dos filhos de seu solo, não enxerga a morte como algo tétrico, muito menos como válvula de escape do vale de lágrimas que tentam erigir entre as montanhas do dogmatismo religioso. “Do pó ao pó” parece fazer mais sentido para esse objeto que -- não se deixando escapar uma deliciosa e inocente aliteração -- alguns consideram abjeto.

Tua busca pela perfeição resultará na mais profunda e imensurável decepção. É fato. Se te puseres a buscar pela agudeza do raciocínio lógico-intuitivo através da prática vigilante da leitura de clássicos, logo perceberás que as paredes se encontram mais cândidas que nunca, e que as manchas causadas pela incessante observação de uma lâmpada, provoca incômodo a apreensão do conteúdo; i.e., por mais bem-intencionado que seja o intento de procurar pela melhoria dos atributos inerentes ao gênero em questão, acabar-te-ás frustrado por uma eventual, e quase certa, falha, além do rio desembocar num terreno estranho a seu navegante. Não é comodismo. Antes, é uma comodidade, pois se se sabe que os ânimos exaltados, a priori, não encontrarão correspondência ao final do percurso, por que se incomodar com a enervação? A aquisição de novas habilidades dar-se-á de modo natural, quando menos de espera; a perfeição, se não existe, é inatingível e não passa do abrir de olhos àquilo de que já dispomos. É uma questão de percepção.

As linhas precedentes, percebam, traçam uma teoria belíssima – vali-me até de segunda pessoa --, mas que, como toda teoria, é relativa quando aplicada às facetas da vida. Por mais que digamos pra nós mesmos que o céu, de fato, não é azul, e que o efeito colorido não passa dum fenômeno de ótica, sempre nos contemplaremos dizendo quão azul ele é. A cabeça que cada um de nossos corpos comporta, gosta de encontrar-se sucessivamente à parede, dividindo rachaduras e hematomas. Ela só percebe quão parva é, a partir do momento em que carece de forças, procurando, então, alternativas para supressão da necessidade. Muito crêem que a resposta advinda dos camundongos arquetípicos, utilizados por Skinner para a formulação de sua teoria comportamental, é restrita aos mesmos, e, principalmente, existente quando é estimulada. Ledo engano!, somos tão teimosos quando eles. A diferença é que os choques que tomamos não passam de figuras de linguagem, poesia cotidiana.

A vassoura, portanto, não insistirá em seu erro; quem o faz é o usuário. Ela varre apenas, e, por mais patética que seja essa constatação, o rodo faz a água escorrer pelo ralo, o ferro-de-passar passará, etc. A vassoura não se proporá a ser algo que não é nem nunca será; quem o faz é o usuário. Seu sentido adquire as mais estranhas e bizarras formas quando na mão do mesmo: na casa de uma socialite, é artigo de luxo da empregada; na de uma interiorana, é o objeto pelo qual dá vazão ao que sente; na de uma bruxa, é transporte; na mão de um presidente, tornou possível uma interessantíssima campanha publicitária que, aos olhos dos céticos e revolucionalóides, não passou de um apelo forçado às massas que também comiam sanduíche de mortadela; ad infinitum. Um mundo povoado somente por vassouras faria com que eu me preocupasse com que gosto, além, é claro, de ser um mundo mais limpinho.