sábado, março 10, 2007

O poder da palavra

Li na faculdade, semana passada, o texto de um ensaísta, cujo nome não me recordo, que trazia uma profunda divagação acerca do universo imaginário-infantil, no que diz a respeito da invocação de feitiços, palavras mágicas e linguagem injuntiva intricada ao contexto lúdico, inerente às brincadeiras da faixa estária. Como (quase) todo ensaio, a reflexão deixou de habitar o campo das idéias, em detrimento da presunção de se propor acadêmico, passando a adotar aquela linguagem ofídea, regada à prolixia e nomes de teóricos que, certamente, são de utilidade única e exclusiva para análise de assuntos científicos. De qualquer forma, o autor contava que uma vez em que brincava com seus filhos de esconde-esconde, sentiu-se admirado com o poder que as crianças adquiriam naquela fatia de espaço e tempo, ao invocar certas palavras capazes de caracterizar a vitória sobre o outro. Isso, sem danos físico-morais, apenas palavras. E depois começava aquele sumo de academicismos execráveis.

Esse fato encontra subsídio históricos. Tomando-se a Bíblia como exemplo -- repito, como exemplo --, quando Moisés se deparou com a materialização de Deus pela primeira vez, na sarsa ardente, este, para que não se sentisse inferiorizado por aquele, atribuiu-se o nome de Ywh -- adaptado para Yaweh, posteriormente --, cuja pronúncia era impraticável pelos povos da época. Desta forma, mantinha-se à referência respeitosa ao grande Deus, pois nomear as coisas é possui-las, é atribuir-lhes significados e sentir-se dono das mesmas. Diametralmente oposto a esse comportamento, na contemporaneidade, mesmo sabendo-se o nome do demônio, faz-se de tudo para que se evite pronunciá-lo: da mesma forma que a nomeação atribui posse, ela também invoca seu ser representativo, como que num grande ritual de magia. Por conseguinte, ficou estabelecido no imaginário das pessoas temerosas, que o demônio, tão onisciente quanto sua antítese, materializar-se-á àquele que diz seu nome.

A cultura pop soube, mais que nenhum outro âmbito cultural, explorar essa força contida nas palavras e produziu uma série de desenhos, HQ's, mangás e filmes em que a esses conglomerados de letras, diferente do que muitos pensam, foram destinados a sina de personagem principal. Shazam, abracadabra, abre-te-cézamo, super-gêmeos-ativar, thunder-thunder-thunder-cats, pelos-poderes-de-greyskull, parangaricotirimírruaro, pirlimpimpim, entre tantas outras. Sem elas, haveria um imenso hiato na cultura popular, porque é certo que as lembranças advindas da infância deixam mais resquícios que aquelas adquiridas forçosamente, em idade adulta.

Faz-se necessário dizer, entretanto, que deve haver um comprometimento entre ambas as partes, enunciador e interlocutor, a fim de que tais palavras exerçam seu efeito completo. Caso contrário, de nada adianta sequer mecioná-las -- a não ser, é claro, se o intuito for o de exercitar o maxilar. Imagine quão desafiardor é para uma criança, que ordena seu universo através de palavras mágicas, ver seus imperativos sendo ignorados por aqueles que estão fora de sua área de domínio. Se a mesma não se sentir humilhada, buscando subterfúgio em caretas, ou até mesmo agressão física, pode-se contatar a ruptura de sua infância: não há mais papai noel, coelhinho da páscoa, e agora ela deve estar ciente de que o dia das crianças não passa de uma baboseira inventada por gente grande, para satisfazer seu antigo ego. A puberdade, estágio conseguinte, nada mais é que a apreensão dos valores sociais das "pessoas crescidas". O corpo, mais real que o antigo universo lúdico, é a nova preocupação, e a única magia desejada é a que pode mantê-lo belo e esbelto.

É por isso que dizer "Fora, Bush" não surtirá efeito algum. Primeiro porque o interlocutor não se encontra no espaço físico do enunciador, e aqui não nos referimos ao poder de encantamento das palavras como o daquelas de religiões afro-brasileiras; segundo: talvez o presidente estadunidense mal saiba que houve um número considerável de pessoas exigindo seu retorno -- considero essa hipótese após saber que as áreas pelas quais ele passou foram todas modificadas, gentrificadas e reerguidas, ou seja, a realidade também pode ter sofrido alguma maquiagem. Terceira e última hipótese: Bush não acredita no poder dessas palavras, e o máximo que pode ter ocorrido foi classificar a população brasileira como circense e simiesca.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Qualidade de Vida

Nunca antes foi tão difundida a expressão “qualidade de vida”. Se outrora o termo praticamente inexistia, tendo seu cerne oculto por véus postos pela má-vontade de preguiçosos – aqueles em cujas rotinas não havia ao menos a prática da ginástica mental –, agora, junto às ameaças ao planeta, essas três palavras carregam uma importância única. Antes, todo aquele que se entregava a uma dieta alimentar regrada – evitando alimentos danosos à saúde, como frituras, refrigerantes e açúcares-em-demasia –, era tido como natureba, ou, em linhas gerais, o chato. Figura mais execrável que os anti-tabagistas, o natureba não se ocupava em discutir sua dieta com aqueles que não a praticavam; preferia servir-se no buffet de maneira racional, sentando-se em sua cadeira e focando-se apenas em seu prato (verdade seja dita, sempre que a atenção do próximo se esvaece com a conversa com outrem, nossos olhos, quase que imediatamente, voltam-se às escolhas alimentares do mesmo). Eis que os noticiários passam a emitir uma série de boletins diários, pedindo que a população atente a esses detalhes que nos estão arraigados, e que são difíceis de ser digeridos.

Os tais naturebas continuaram fiéis a suas doses costumeiras de proteínas magras, saladas e frutas, enquanto o resto do mundo tenta passar por uma adaptação que, a seus olhos, soa mais como um absurdo. De seres habitantes dos sombrios calabouços do reino da acelga, passaram a possuir o status de semi-deuses, podendo, inclusive, habitar um Olimpo construído só para eles. Isso, pois, na maioria das vezes, a maneira apropriada de se alimentar, grosso modo, alia-se à prática de algum tipo de esporte, garantindo ao praticante, assim, corpo e mente sãos. Os comentários maldosos acerca dos que prezam pela qualidade de vida continuam maldosos e insinuam mais coisas do que sonham nossas vãs filosofias, entretanto, o desejo em se comportar como um deles aumentou exponencialmente, embora a força para fazê-lo continue estagnada, próxima aos círculos inferiores do inferno dantesco.

Que faz bem para o corpo, todos nós sabemos, mas até que ponto é louvável entregar-se à tal qualidade de vida? Questiono isso, porque há um ano dedico-me à limitação na ingestão de calorias diárias, entrei numa academia e reeduquei-me quanto a um monte de outras crenças. Os resultados são visíveis; estou, em partes, contente com que alcancei, mas o excessivo número de pessoas que estão de igual forma bem, comendo aquilo de que abri mão, porém, é um fantasma que me assombra diariamente. É fato que minha saúde está sendo poupada de uma série de infortúnios, mas a total abdicação dos antigos e perigosos prazeres nutricionais me faz querer prová-los, a fim de que sacie minha vontade. Domo os instintos e me pergunto, “quem terá mais qualidade de vida: eu, que me privo de uma gama de alimentos prejudiciais ao corpo; ou eles que ingere esses ‘vilões corpóreos’, mas sorriem, contentes, após a boca esvaziar-se de néctares doces ou provarem pratos quentes e saborosos?”

É preciso ter determinação para adotar a tal qualidade de vida, pois, no primeiro deslize, pode-se voltar aos velhos costumes. Mas esse termo, como tudo aquilo que nos é informado pelos veículos de comunicação, é produto de alguns geniosos sedentários. Com a morte das anoréxicas, foi-se dito que o “imperativo do corpo magro” tenderia a desaparecer, e que outras formas de beleza seriam valorizadas ao serem redescobertas. Não é isso que se percebe: pede-se o corpo esbelto de sempre, mas de maneira eufemística, as expressões agora são outras, todas voltadas ao tema central dessa postagem: a qualidade de vida.

Percebe-se, analisando-se desse modo, que a privação acima descrita é fortuita apenas nos casos em que a insatisfação com o corpo é fator determinante ao “possuinte” e ser possuído. Existem, sim, variadas belezas, e o prazer não se encontra numa porção ínfima de comida posta no prato, nem numa pílula que infla seu estômago, simulando um estado de saciedade. Se o relacionamento consigo próprio e com um membro social está fluindo, não há motivo, creio, para abandonar os vícios e entregar-se a uma dita tendência. A felicidade, com efeito, deve ser a verdadeira tendência e reinar sobre todos os outros imperativos com os quais nos deparamos com freqüência.

Esqueça tudo isso que falam sobre aquecimento global e o reposicionamento do homem perante essa nova realidade. Também tida como tendência, a “vida verde” deve ser algo que vá ser praticado, em sua plenitude, apenas por nossos netos e bisnetos quando poucos recursos lhes restarem no planeta. De igual forma, o alimento não será transmutado em nome de um bem maior conquistado num presente doloroso.

Observamos as crianças brincando e lhes invejamos a inocência e carência de preocupações inerentes ao “mundo adulto”. Talvez elas sejam contentes pelo simples fato de não saberem que o são.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

De Cicarelli a Saddam.

Segundo o dicionário Aurélio de língua portuguesa, censura é “1. proibir a divulgação, ou a execução de; 2. fazer cortes em; 3. criticar, notar; 4. Fazer reparos sobre falha, defeito, omissão, etc. em; condenar, reprovar; 5. Admoestar com energia; repreender; 6. Demonstrar reprovação, crítica, ou ressentimento, por meio de gesto, olhar, etc.; 7. Reprochar, exprobrar; 8. Proibir (filme, livro, etc.)” Com tantas opções que nos são dispostas, fica até mais fácil compreender a que ponto chegou os meios de controle brasileiros, que nos mostraram, mais uma vez, quão inconsistentes e falhos são ao bloquear o site do Youtube, no dia 9 de janeiro. Não obstante, lançaram mão de táctica totalmente obsoleta que remontou aos períodos de caça-às-bruxas, pondo na fogueira milhões de usuários que não possuíam nenhum tipo de vínculo com nossa modelon e seu namorado, outrora desconhecido. Ficou provado que o comodismo de se atacar as conseqüências – sem, contudo, analisar-se primeiramente as causas – ainda é imperativo quando se trata de assuntos que merecem uma devida reflexão.

“1. proibir a divulgação, ou a execução de.” Todos pensavam ser rumor que alguns desembargadores e juízes, responsáveis pelo caso acima citado, fossem, de fato, bloquear o site de compartilhamento de vídeos, que recebe mais de milhões visitas por dia. Assim como se especulou sobre um eventual bloqueio a ser feito contra o orkut, a hipótese de ter o Youtube fora da rotina de acesso à Internet, assustou a muitos que se viam consumidos pelo hábito. Quando o fato foi oficializado, essas mesmas pessoas que não esperavam por tal desfecho, contrário às suas expectativas – afinal, o boato do orkut, como todo boato, mostrou-se irrisório, sendo abatido por desculpas técnicas –, mobilizou-se individualmente, atirando para todos os lados: queria-se boicotar a mtv, xingaram a Cicarelli, seu namorado, botaram os nomes na boca do sapo, enfim, serviram-se de toda sorte de mau augúrio imaginável a fim de que, tendo na revolta sua santa válvula de escape, conformassem-se com a terrível e cruel realidade que se esboçava num horizonte próximo: a vida sem o Youtube.

“2. fazer cortes em.” Esse tipo de comportamento, entretanto, sob diversos aspectos, aproximava-se do mesmo adotado pelos censores, umas vez que, se estes não mobilizaram para apurar os verdadeiros culpados e aplicar a lei a quem se devia, aqueles, ainda dominados por uma infantilidade ímpar, típica de revolucionóides anti-impérios, determinaram que a saída mais sábia era o boicote. A emissora, já sentindo o bolso apertar, vazio, prontamente notificou um comunicado em que dizia que, “a maioria desses protestos no fundo compartilha dos mesmos desvalores que quer atacar pois fomenta a censura a um canal de televisão”. Correto, mas esses tais desvalores não são compartilhados em sua completude, como dito acima, pois a censura foi imposta, e o boicote, mesmo surgindo de uma minoria – irradiado, posteriormente, à massa de desocupados –, constitui uma ação livre ou, como muitos a têm chamado, “uma ação democrática”.

“3. criticar, notar” Democrática ou não, ainda acho de péssimo gosto querer mostrar toda e qualquer tipo de ideologia através de um simples boicote. Esses alcançam seus devidos propósitos não quando são dirigidos a esses fins. O buraco é mais embaixo. O boicote se faz sentir latente em um universo menor de pessoas, onde o número de afetados tende a exceder o total composto pelas pessoas desse mesmo universo. Não espere, num futuro próximo, que as grandes corporações dêem ouvidos aos anseios de seus consumidores através de protestos e boicotes. As soluções civilizadas e metodológicas revelam-se as mais eficazes, pois não representam problemas à ordem vigente, muito menos ameaçam a soberania do Estado. Por que não, no caso da Cica, parodiar o fato, aproveitando do momento para que se divulgue coisas que nos são muito mais importantes? O kairós, elemento que configura a oportunidade nas relações humanas, não é necessário somente no mercado da fala; antes, prolonga-se por toda cultura (humana).

“4. Fazer reparos sobre falha, defeito, omissão, etc. em” Após os tais 20 mil e-mails recebidos pela MTV, as centenas de reclamações em blogs e sites da Internet, o juiz resolveu voltar atrás e mandou desbloquear o Youtube... Tá, vamos recomeçar esse parágrafo a partir do segundo período: Após perceber que a medida não passava de um paliativo, e que de nada adiantava bloquear o site dos vídeos – pois, descendentes de Adão e Eva, padecemos da mesma compulsão que nos leva a consumir o proibido – (sempre existem alternativas), o juiz voltou atrás e mandou desbloquear o Youtube. Pronto, todos agora já podiam ver o vídeo do Saddam sendo enforcado, além, é claro, das tradicionais baboseiras e utilidades oferecidas pelo tubo.

“5. Admoestar com energia; repreender” Por falar em Saddam, talvez ele e a Cicarelli, juntos, protagonizassem um melhor desempenho na praia, rendendo não só mais comentários e trabalho para assessoria de imprensa de ambas as partes, como também uma repercussão em escala mundial. Não bastasse o ditador morrer, quis-se ver como que se deu o momento fatídico de sua morte. Uma das pessoas presentes na execução, aproveitando do máximo que a convergência digital oferece aos celulares, filmou os momentos anteriores, correntes e seguintes à morte do ex-ditador. Entrementes, uma torcida velada, ao ver tal vídeo, torcia em seus âmagos, que aquela alma fosse condenada e mandada aos círculos inferiores do inferno. Essa prece, todavia, não podia ser completa sem se ver o estado deplorável em que ficou o corpo após a forca, exibindo sangue em locais estratégicos, além de uma angulação sobre-humana no pescoço.

“6. Demonstrar reprovação, crítica, ou ressentimento, por meio de gesto, olhar, etc” No Oriente, pelo menos, instituiu-se a morte ao responsável pelo vídeo, sendo ele execrado por ter massificado um fato que causou o regozijo aos habitantes daqueles lados. Melhor assim, sem rodeios, mostrou-se que, mesmo causando guerras incessantes, aquele povo não confunde as coisas e mantém a hombridade e a humanidade. Aqui, por enquanto, age-se hipocritamente, remediando a parte sã do corpo, enquanto a débil convalesce em sua fraqueza.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Ano novo; violência, controle e sensacionalismo velhos.

Mais um ano que se passa, e as listas de promessas vão-se enchendo novamente. Se não bastasse não cumprir cerca de metade das anotadas no ano anterior, uma quantidade absurda de pessoas apela não só para esses famigerados mecanismos metafísicos de troca, mas também cultuam uma série de outros aparatos que não encontram subsídios na realidade, e que prometem resultados positivos depois da realização de determinadas tarefas – que incluem a ingestão de comidas diversas, uso de um número específico de objetos e banhos na cândida água do mar (o verdadeiro esgoto tupiniquim a essa época do ano): a saga hercúlea dos severinos e macunaímas. O ritual se repete todos os anos: um corpo constituído pela massa dos brasileiros comuta dos resquícios do espírito natalino, fortificado pelas desilusões e decepções de outrora, encontrando no aparato sonoro-luminoso a maneira pela qual se chegará aos deuses – porque, hão de convir, lançar fogos-de-artifício, analisando-se sob o prisma do ceticismo, não faz o menor sentido.

E o que se pôde reparar nos segundos finais de 2006? Que a nossa queria e mui amada Rede Globo de Televisão foi o veículo que não só acumulou a maior quantidade de renda – o que não é de espantar ninguém –, humildemente destinado a parte da festa realizada na Avenida Paulista, como também foi o veículo que se perpetua como dono de várias redes de poder, que muitas vezes passam imperceptíveis devido ao hábito.

O tempo, já dizia Kant, é matéria etérea que de fato não existe. É, com efeito, projeto de nossas mentes que não conseguem entender os ciclos em sua completude. Nossa Rede Plim-Plim, já ciente disso, não deixou que os ponteiros dos relógios Brasil afora não coincidissem, o que poderia gerar desunião e diferença nos instantes em que se desejaria “Feliz Ano Novo!”. Sim, percebam a gravidade que esse problema poderia causar! Assim, instantes antes da virada do ano, a emissora fez sua própria contagem regressiva que foi seguida à risca nas principais cidades em que os fogos brilhariam nos céus estrelados. Como dito, a falta de percepção pode fazer com que um acontecimento desses soe fútil e banal; da mesma forma que, tendo em mente o histórico da Rede Globo, o esquema de poderes e influência supranacional fica patente através dessas práticas lúdicas.

Enquanto isso, a tal solidariedade, que impera nos dias finais do ano, revelou-se hipócrita duas vezes. A primeira, já de praxe, que faz com que a visão de um mendigo na rua seja extremamente poética, e a ânsia em ajudá-lo sobrepuja a ação que de fato acontece; A segunda, por causa da execução do Saddam, realizada antes das “celebrações que tomam espaço no Oriente Médio”. Para decepção das emissoras de televisão, as cenas dos executores encapuzados, pondo a corda em volta do pescoço do ex-ditador, e o fato consumado, quando Saddam já estava morto, não entraram para as retrospectivas. Para corrigir o problema, a imagem foi exibida sucessivamente nos canais de redes de transmissão aberta e fechadas, rendendo, inclusive, um bônus nas horas seguintes: o enforcamento, literalmente.

Como um pouco mais de violência nunca faz mal, o pandemônio que acontecera em São Paulo repetiu-se no Rio de Janeiro, dessa vez em proporções maiores, envolvendo inocentes e causas que até então são desconhecidas. Ônibus são incendiados, pessoas são mortas, cabines dos policiais civis são fuziladas e o buzz se revela útil também nesse cenário – longe de ser buzz marketing, todavia. O presidente, enquanto se preocupa em deixa visível sua faixa presidencial – que remonta aos desfiles de miss – apela ao sensacionalismo, dizendo que tais ataques foram os ataques terroristas mais violentos que já viu. É claro, soa bonito na posse, mas revela-se argumento débil e, como todos nós sabemos, palavras ainda não são capazes de mudar os rumos do rio da história por aqui.

Coincidência ou não, cada vez mais o mundo assimila-se à distopia 1984. Temeroso ou não, cada vez mais considero George Orwel um visionário.

domingo, dezembro 24, 2006

Natal e algo a mais.


Tá, não vou ficar dissertando sobre minha incredulidade quanto ao Natal, quanto à perda do espírito natalino, muito menos vou desferir uma saraivada de críticas contra o costume judaico-cristão que acabou por se disseminar pelo mundo como uma panacéia. Vou, por substituição, narrar o Natal que minha família vive todos os anos e que, com o decorrer dos mesmos, fica mais e mais tedioso. Antes, contudo, como apregoa a etiqueta velada, mas ainda onipresente, quero desejar a todos um feliz Natal, muita felicidade, realização e tudo aquilo que você ouvirá/lerá nos dias próximos ao ano novo – criatividade nesses dias, convenhamos, não é algo que brote espontaneamente; antes, é como a maioria das flores, que desabrocha em determinados períodos do ano. Agora que já cumpri as obrigações, vamos ao post.

Faz-se necessário, antes de começar a contar minhas dantescas aventuras, explanar-lhes a situação natalina num momento em que meu avô materno ainda era vivo. Como de praxe, a presença dum espírito idoso na família, cujo reconhecimento e respeito se dá em detrimento de seus atos em vida, propicia a reunião dos integrantes dessa mui amada instituição social. Até parece que todos se reúnem para um último adeus, para que possam então traçar seus caminhos e livrar-se das manias e trejeitos incômodos de alguns parentes. Digo que é praxe, porque são incontáveis as vezes que já ouvi sobre como as famílias se dispersam após o falecimento do ser mais idoso, sejam avós, sejam tios ou mesmo alguém que não divide o mesmo sobrenome, mas que carrega uma importância imensurável nos corações daqueles que se dispõem ao seu redor.

Como dito, com meus familiares a situação se repetiu. Antigamente, reuníamo-nos na casa do irmão mais velho da minha mãe, os parentes maternos e paternos, todos comungando das mesmas aspirações, tomados por aquela situação de bem estar intrínseca ao (antigo) Natal. As crianças corriam por todos os lados, derrubando talheres e ornamentos, as garotas dançavam na garagem – época do hit “boquinha da garrafa”, eu me recordo – os homens cuidavam da churrasqueira enquanto bebiam cerveja e as mulheres se dividiam entre a cozinha e os sofás, frente à televisão – o especial do Roberto Carlos era transmitido na noite de véspera da data natalina. Por uma noite, não havia motivos para brigas, discussões, muito menos era pauta as diferenças entre aqueles que habitavam o ambiente festivo, repleto de luzes. As mulheres da cozinha, não obstante, faziam o máximo que podiam para barrar as crianças, pois estas sempre saíam, aos risos, com os dedos engordurados, resultado dum bem arquitetado plano para roubar a pele que sobrara do peru.

Falecido meu avô remanescente, a festa de natal acabou por se tornar uma obrigação. Tentou-se, sem sucesso, reunir todas as pessoas que costumavam participar na casa do meu tio, mas algumas delas sempre alegavam não estarem bem: motivo responsável por sua estadia em seus domicílios, longe do barulho e excessivo número de indivíduos. Foi como uma grande torre de Babel: se outrora adivinhávamos os anseios de alguém simplesmente por mirar o brilho de seus olhos, agora nem mesmo o diálogo era capaz de solver algumas dúvidas acerca do próximo. Natal passava a ser, doravante, a data em que NÃO se discutia a divisão da herança e posses, além de ser, por conseguinte, um tempo em que se simulava na família uma trégua regrada, metódica e com prazo de validade.

Hoje, superada a crise das heranças, ligamos uns para os outros e desejamos votos de felicidade. Com freqüência não se atende o telefone por medo da insurreição de temas que acabarão arruinando um estado de espírito que faz questão de reviver no 25 de Dezembro. Aqui em casa, em particular, à parte de todos os eventos exteriores, o dia é muito semelhante a um domingo qualquer, dia em que todos os moradores da casa – eu, pai, mãe, irmão, Eros e Princesa – ficam juntos e comem pratos diversificados, ausentes no dias da semana. A diferença fundamental entre o Natal e os domingos, entretanto, é que nestes, nós atuamos da melhor forma que podemos, rindo das piadas mais fúteis, aprovando os temperos mais bizarros e assistindo juntos aos saudabilíssimos programas dominicais; naquele, a linha que prende a máscara ao rosto, afrouxa e um semblante pesado povoa os quatros rostos que se sentam à mesa.

O sentido do Natal pós-moderno não é mais lembrar que existe um monte de gente passando fome enquanto você enche sua barriga com os quitutes sobre a mesa, nem deixar-se povoar pela solidariedade momentânea, responsável por fazê-lo querer mudar o mundo ao seu redor. O verdadeiro sentido do Natal é lembrar, pelo menos uma vez ao ano, que você nunca fez, e não faz nada disso, e que, no fundo, pouco se importa para essas questões ético-sociais.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Da verdadeira inspiração

Já descrevi, com algumas minúcias, o espaço que compreende a feira que eu costumo freqüentar, nos Domingos em que eu deixo de lado uma série de preconceitos, além, é claro, a preguiça eminente, típica do dia. Pois bem, volto a dizer que não há outro local que mais me inspire. Não digo inspiração daquelas que surge forçosamente, num quarto escuro, em que há etílicos e música do Raul Seixas. Falo da inspiração que quebra paradigmas diários, demolindo mitos do cotidiano e que acaba por corroborar um texto que se baseia no mesmo. Afinal, a descrição da aurora por parte daquele que cisma em trancafiar-se em porões que cheiram a mofo, nada mais é que fruto imaginário e insípido de uma mente enérgica, carente da vivência com outras pessoas e todas as mínimas coisas que compõem o repertório de sentimentos humanos.

Eu me nego a ficar sentado diante de uma fonte de águas cristalinas – que saem da boca e orifícios de indivíduos marmóreos com semblantes angelicais –, sob uma frondosa árvore num parque, ou até mesmo pretender-se dono de uma humildade que não é minha, forçando-me a conversar com pessoas vitimadas pela fúria dos jornais baratos. Talvez seja por isso que grande parte da literatura cult me provoca, no mínimo, o asco: seus donos, munidos de penas e tinteiros, esboçam um estudo da realidade que não encontra subterfúgios na própria realidade. A filosofia, por exemplo, é ótima para reflexão, mas é só analisar todo seu histórico e se perceberá que sempre foi a filosofia de ninguém; os textos ganharam notoriedade após anos – grosso modo, após o falecimento de seus escritores. A verdadeira literatura é aquela capaz de atingir a todos, pois todos nós temos o famigerado “amor à sabedoria”. Amor este que vai desde conversas de bar, até o questionamento que remonta à Hamlet, “to be or not to be?”.

Sempre antes de postar nesse blog, não muito diferente do Kase, esperava até o momento em que as idéias para a próxima postagem maturassem, a fim de que eu não publicasse um material chulo, de que me envergonharia semanas posteriores. O processo de maturação, entretanto, é longo e não possui um prazo. Há, então, 3 alternativas: esperar o devido instante; não esperá-lo, esforçando-se para simulá-lo; não esperá-lo, não esforçando-se para simulá-lo. Tinha em mente publicar algumas resenhas de filmes que me puseram numa discussão atroz comigo mesmo. Antes que eu o fizesse, porém, ao voltar pelo caminho que costumo fazer na ida à minha casa, olhei aquelas pessoas que compõem o cenários outrora tomado pela feira, e me pus numa discussão mais feroz ainda.

O caminho, que inicia com um amontoado de sacolas de lixo – de onde é possível sentir um ar abafado e pútrido –, é como uma calçada gigante por onde transitam pessoas, carros, motos, bicicletas e, também, pessoas. O comércio local é variado e destina-se desde à produção de pães e bebidas até a oferta de frangos e de carne bovina. É como, logo, se o cheiro daqueles sacos de lixo se perpetuasse por toda extensão do local, fato que justifica o excessivo número de cães e pombas. À noite, quando as lojas se fecham, os bares dão vida ao lugar, atraindo homens e mulheres desejosos do esquecimento do sofrimento diário, e da loira mais gelada. Uma senhora, com seu 1,55m de altura, pede que um rapaz de aproxime e divida uma cerveja com ela. O clima fica tenso, eu me afasto e não sei que desfecho aquela história teve. Mais adiante, um grupo de garotas se amontoa atrás de um orelhão, como se estivessem prestes a fazer a primeira ligação de suas vidas. Riem histericamente, com as mãos cobrindo as bocas abertas, enquanto um homem, no orelhão contrário, tenta, ineficazmente, repreendê-las com olhar de desaprovação. Numa antiga perua, um senhor anuncia a venda de suas “pissas”, conversa com os fregueses e não percebe que é motivo de riso dos transeuntes, dotados do obsoleto espírito dos gramáticos. Ainda há movimento na padaria, e à sua frente uma banca de frutas exibe seu material colorido...

Não é preciso incorporar a animosidade dos participantes do Terceiro Setor. Na realidade, seria de péssimo gosto essa adoção, pois só confirmaria mais ainda o preconceito e a falta de respeito pela alteridade. As formas de inspirar-se são inúmeras, e até parece um pouco egoísta denominar aquela que realmente me importa; todavia, o olhar que não se dirige ao ser humano, e que o descreve em palavras, não passa da cegueira dos teimosos, inconsistentes e fúteis. O homem é uma parte ínfima do projeto que se chama vida, assim, se ainda somos deficientes em observá-lo e entendê-lo em sua completude, que sentido faz viver?

sábado, novembro 25, 2006

Espelho, espelho meu.

Se eu chegar a questionar se, de fato, existe alguém mais bonito que eu, a pergunta seria retórica, então lhes pouparei os olhos e os comentários rasga-seda. O que na realidade me motiva a escrever esse post é a amplitude que a beleza vem ganhando nas mídias e veículos de comunicação, sendo pauta difundida em espaços outrora não muito interessantes – como os programas jornalísticos e os sensacionalistas. Outra vez, os ideais de beleza voltam a povoar as rodas de discussão, a mítica da estética corporal transforma-se numa estátua oxidada a ser martelada e o cérebro das modelos é posto em xeque. Aquilo que se apregoava: dietas, malhação, suplementos, passam a ser a maçã comida por Eva no paraíso, e é isso que passam a ser as garotas raquíticas: moças inocentes, inebriadas pelo alcance de um objetivo homérico, impalpável, que, à sua percepção, era tangível.

A grande serpente, seguindo analogia, não poderia ser outro ícone que não a própria mídia. Ela, que após traçar sinuosas curvas pelos mares de gente, acaba por morder o próprio rabo: divulgava as receitas para adquirir o corpo perfeito, propunha-se acasalar com o primeiro centro de estética que visse pela frente, dando luz a inserções diárias, os vulgos merchandisings – que, convenhamos, não têm nada de merchandising. O momento da mordida em seu rabo, estridente e escamoso, é o que nos é apresentado atualmente, em que, defensora das diferenças étnicas, sexuais e morais, ela se propõe a questionar até que ponto a busca, que ela mesma deu início, é válida. Os dentes afiados vão se escondendo, a língua solta endireita-se e assistimos ao seu hipócrita processo de antropomorfismo: ganha pernas, braços, órgãos e, é claro, o que dizia faltar naquelas garotas, o cérebro.

O que ninguém tem coragem de dizer é que, usando o bom e velho inglês barato, almost anybody ain’t got the balls to do it. Mas, fazer o quê? Destruir o castelo que fora previamente construído com areia? Comover-se com o fato de que, diariamente, milhares de meninas põem o dedo na goela, expelindo o bolo alimentar de digestão precária? Ou atentar-se às pessoas que convivem ao nosso redor, provocando alardes quando se notar o primeiro sintoma de bulimia/ anorexia?

De minha parte, admiro a vontade incessante em se conseguir um corpo legal, digno de elogios e comentários positivos, nem que para isso tenha de se sujeitar a condições inumanas de sobrevivência. O processo de “embelezamento” em si já é doloroso e conflui somente os que traçaram objetivos concretos e não se deixam levar pelo primeiro brigadeiro exposto na prateleira da padaria. Que fique claro que não estou dizendo: “ei, leitor, levante essa bunda da cadeira, entre numa academia, pare de comer e se encha de drogas”. Não é a isso que quero visar; o que incomoda é o fato de a maioria dos críticos nunca ter se sujeitado a algum tipo de dieta, maluca ou não, e preparar sua saraivada de nonsense com o primeiro caso de morte com que se deparam.

Haverá sempre os bem intencionado, como os responsáveis pelo novo posicionamento da Dove na Campanha pela Real Beleza. Todavia, tenho o péssimo hábito de desconfiar de qualquer coisa a partir do momento em que ela passa a ser veiculada na mídia, o que me garante, na maioria das vezes, a típica gargalhada final:


O espelho não é opaco nem lhe indica os caminhos a serem traçados para que se alcance o corpo ideal. Somos vitimados, sim, por nossa consciência: se pesada, fará com que seu dono procure alternativas a fim de que o dano cometido seja reparado por uma dieta balanceada; se singela, será acometida por um susto repentino quando o dono sofrer algum distúrbio alimentar e/ou doenças curadas apenas pela ingestão regrada de remédios. Esses acabarão, em fim, sendo iguais àqueles. Só que ninguém admite. Talvez o que haja de mais louvável no cristianismo seja a preocupação com o templo em que se instala o Espírito Santo, o corpo. Abre-se mão de uma série de práticas, com o fim único de respeitar a fisiologia. Não obstante, a consciência também entra na dieta, colhendo os frutos semeados pelo temor divino :)